Da Enxada à Cátedra [ 3 ]

É sobre esse  panorama como pano de fundo que situo as minhas reminiscências pois, são a expressão transitória da linha mestra e perene da história construída pelas quatro primeiras gerações da imigração de alemães, italianos, poloneses  e outras procedências étnicas no sul do Brasil. Começo destacando como as quatro primeiras gerações da minha família moldaram o transitório  dessa história e, por isso mesmo, são uma amostra paradigmática da perenidade da linha mestra  da saga da imigração alemã no sul do Brasil. Na opinião de Carlos Fouquet: “A história da humanidade é a história de migrações e suas consequências”. O motivo, a explicação que responde, em última análise, pela razão do porque as pessoas ou mesmo povos inteiros migram encontra-se resumida nas quatro palavrinhas deixadas pela sabedoria romana lembradas mais acima: “ubi bene ibi pátria” – “onde alguém se sente bem aí está a sua pátria”.   O migrante partindo para terras longínquas, geográfica e culturalmente desconhecidas, passa compulsoriamente pelo desenraizamento da sua terra e história de origem, para o enraizamento também compulsório nas novas circunstâncias, como também já lembramos mais acima. Essa transição não se dá sem traumas tanto mais profundos quanto mais radical e dolorosa for o deixar para trás a pátria e a querência de origem e a consolidação da nova querência numa nova pátria. Nas páginas que seguem  pretendo mostrar como aconteceu o enraizamento dos imigrantes alemães no sul do Brasil, tendo como protagonistas a minha família e as comunidades com as quais estava comprometida. E o “deitar raízes” começou obviamente com o mais elementar: alimento e abrigo. Tento imaginar o estado de alma de meu trisavô Mathias, minha trisavó Susana e os filhos pequenos, ao descarregarem seus poucos pertences na sombra das árvores da floresta fechada de 70 hectares que lhes coube em São José do Hortêncio, pela legislação de então, como cenário para contribuir na implantação de um modelo de produção agrária até então desconhecido no Brasil: a policultura familiar. Providenciar por alimento e abrigo ocupava o topo das preocupações. Para tanto foi necessário instalar um abrigo provisório e precário com galhos, troncos, taquaras e cobertura de leques de palmeira e/ou palmito e similares. Valho-me da parte de um conto dentre os 21 que o Pe. Rambo escreveu, no dialeto Hunsrück entre 1937 e 1960, sobre a realidade da imigração no sul do Brasil, desde o seu começo em 1824 até o final da década de 1950. Num deles registrou as vivências de uma colona, representante emblemática dessas heroínas pouco lembradas na implantação de novas fronteiras de colonização. 

 

“Repare, padre, começou a tia Susana, meu verdadeiro nome é Bitterselig. É um nome engraçado e há pessoas tolas que riem dele. Certamente é um nome honesto como qualquer outro. Meu avô veio como imigrante da  Alemanha e morou em algum lugar lá nas colônias velhas. Morreu antes de eu nascer. 

 

Meu pai comprou uma colônia  de terra na Picada do Pote de Leite (Millichdippedal), na época em que lá ainda era tudo mato. Nos primeiros anos morou numa casa que não era muito melhor que uma choupana. Naquela choupana miserável nascemos os cinco mais velhos. Não  éramos ricos, mas nunca nos faltou comida e todos tínhamos saúde. O mato em volta estava cheio de animais selvagens. Os bugios acomodavam-se na grande figueira ao lado da estrebaria e nos dias de chuva tocavam a sua música. Meu pai costumava dizer que era a banda de músicos  da Picada do Pote do Leite. De noite, quando escurecia, escutava-se com frequência o urro da onça no alto do morro. Nós crianças corríamos para dentro de casa e nos escondíamos debaixo das camas. Também o nosso cachorro grande perdia a coragem e nos acompanhava para dentro de casa. 

 

Logo que meu pai melhorou um pouco, construiu uma casa nova. Era ainda de tábuas e coberta com tabuinhas, mas já era uma casa de verdade, com cozinha separada como deve ser. A casa velha serviu de paiol. Os cinco filhos, a essa altura, já tinham aumentado para nove e o Pedro, o mais velho, tinha quinze anos. Foi aí, padre, que aconteceu uma tragédia que nunca vou esquecer, mesmo que chegue aos cem anos. Era um desses dias quentes de fim de verão. Nós, as crianças e a mãe, estávamos sozinhos em casa porque o pai fora ajudar um irmão construir uma estrebaria. Os dois mais velhos, o Pedro e o João, dormiam no sótão. As meninas no quarto ao lado da mãe e as bem pequenas com a mãe. 

 

Depois que todos haviam adormecido, ouviu-se, de repente, um grito dentro de casa. Parece que ainda o escuto hoje e cada vez que me lembro dele arrepio-me até os ossos. Foi a voz do Pedro que gritava: fogo, fogo, fogo! Escutou-se depois um barulho na escada do sótão e os dois rapazes saíram correndo. Barulhava e soprava como mato queimando. O calor era tal que parecia estarmos na frente de um forno aberto. A mãe saiu correndo com as duas meninas menores nos braços. Tentou sair pela porta para alcançar o jardim. Nada mais havia a fazer. A parede inteira ardia. Os caibros e as tabuinhas despencavam. Na outra porta era ainda pior. A mãe voltou para o quarto e os dois rapazes a seguiram. Pularam a janela e se colocaram do lado de fora.  A mãe lhes alcançou uma criança depois da outra. Os rapazes as pegavam, e, sem perder tempo, as levaram debaixo da parreira fora do alcance do fogo.  

 

Quando a mãe achou que todas as crianças estavam a salvo, agarrou toda a roupa e utensílios possíveis e jogou para fora. Ela mesma só saltou pela janela quando a armação do telhado começou a ruir. Ao chegar debaixo da parreira onde se encontravam os rapazes, ela contou as crianças. Faltava uma das meninas. A menina era a Susana. Como foi, ninguém sabe. Quando ouvi os gritos dos rapazes e vi o fogo, fiquei com um medo terrível. Enfiei-me debaixo da cama e a mãe não me viu. Em minha volta tudo começou a dançar e tive a impressão que adormecia aos poucos. Meio dormindo alguém me levantou e aí senti um enorme calor em volta de mim. Senti uma pancada e em seguida frio e molhado. Depois não soube mais nada do incêndio. 

 

Ao voltar a mim, levei um bom tempo até me dar conta onde me encontrava. Estava deitada numa caminha, macia e branca como a neve, toda enrolada e enfaixada. Só o rosto ficava livre e vi duas senhoras ao lado da caminha. Vestiam-se de branco e na cabeça levavam um canudo branco que impedia que se enxergasse o rosto olhando-as de lado. Tive a sensação de estar morta e enterrada, que me encontrava no céu e que as duas mulheres brancas eram anjos. Mas alguma coisa não combinava. Não tinham asas como um anjo de verdade. Além disso, comecei perceber que todo o corpo doía, o que também não combinava com o céu. 

 

Reparei que as duas mulheres – padre o senhor já deve ter adivinhado que eram irmãs – pararam diante de uma outra cama. Nela havia alguém toda enfaixada como eu. Gemia sem parar e chamava meu nome e os nomes dos meus irmãos. De repente ficou tudo claro na minha cabeça. Quis levantar e correr junto da mãe, mas estava toda enfaixada e não consegui levantar-me. Uma das irmãs me segurou. Não tenho ideia de quanto tempo tive que ficar enfaixada no hospital. Só me lembro que certa tarde o pai e os rapazes mais velhos chegaram no hospital. O pai levantou-me da caminha e carregou-me até a cama da mãe. Ela sorriu entre os muitos panos que envolviam sua cabeça e disse  meu nome. Tudo estava bem de novo e depois de uma semana pude voltar para casa. A mãe teve que ficar mais um mês no hospital. 

 

Só depois de alguns anos soube como tudo acontecera. A mãe, ao chegar debaixo da parreira e notando que faltava uma das meninas, deu meia volta, atravessou o fogo, entrou no meu quarto e comigo nos braços pulou pela janela. Nesse meio tempo, nossas roupas pegaram fogo e a mãe, ao pular quebrou a perna  esquerda abaixo do joelho. Não fossem os dois rapazes nós duas teríamos queimado miseravelmente junto com a casa. Sem perder tempo jogaram alguns baldes de água em cima de nós e apagaram  o fogo.  O  Pedro, o João, a Catarina e a Maria nos acomodaram em cima de um lona de debulhar feijão e nos cobriram com sacos, porque não tinha outra coisa. 

                                                                                                                                                                                                       

O senhor pode imaginar,  padre, os sentimentos do nosso pobre pai, olhando a casa, a cozinha e todos os bens queimados e não sabendo se eu e a mãe estávamos vivas ou mortas. Mas ele não era homem de fazer barulho e espalhafato. 

 

“Vamos ao médico!”, foi a única coisa que ele disse. Os homens fizeram uma maca e nela deitaram a mãe e a mim e na mesma noite nos levaram até o hospital. Naquela época nem todas paróquias tinham seu médico e hospital como costuma ser hoje. Os homens caminharam doze horas, até chegarem no hospital e isso salvou a vida da minha mãe e a minha também. 

 

Tudo  isso foi duro para meu pai, mas não havia nada que o amedrontasse. O principal foi que ninguém morrera queimado. Roupas e utensílios é possível comprar de novo. Os vizinhos e parentes ajudaram a construir a nova casa. No dia em que a mãe voltou do hospital a cozinha já estava coberta e a casa com as paredes levantadas”. (cf. Conto Susana Bitterselig, 2.002, p. 67-69). 

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