[ Reflexões ]

As reflexões que vínhamos fazendo até aqui provavelmente não interessam ao racionalismo científico e filosófico de hoje. Pelo contrário. Irrita-o, pois, mina as bases da sua consciência de superioridade. Subtrai-lhe o argumento do “nunca antes na história do conhecimento”, se descobriu algo tão definitivo, tão determinante, tão inovador. Como se pode ver a construção do conhecimento começa sem alarde. Vai ocupando o seu lugar e instalando a sua morada no cenário deste planeta como o homem seu protagonista, silenciosa e discretamente. Aliás tudo o que é sólido, consistente e durável, costuma ser gerado, gestado e consolidado em ambientes discretos e silenciosos, longe da zoeira, do barulho, da algazarra, dos foguetes e tambores. A harmonia é a antípoda das fanfarras. Em tais ambientes e para as pessoas que os frequentam “a harmonia é chata”, como constatou Francis Collins e se esquecem que o “Perene” que garante a solidez do conhecimento não é dado ao barulho, ao estardalhaço e cacofonia que inspira as manchetes dos noticiários dos meios de comunicação.

A questão temporal
Mas há um outro viés que merece ser considerado. Diz respeito à questão temporal envolvida na construção do conhecimento. Resume-se na pergunta de quanto tempo foi necessário para alcançar-se o nível de conhecimento até o momento em que dispomos de registros históricos definitivos e confiáveis. Retomando a Astrologia-Astronomia como exemplo ilustrativo é preciso destacar um elemento fundamental. A Astronomia como ciência só é possível com a ajuda de conhecimentos de Matemática. Não é por acaso que entre os povos que cultivavam a Astronomia como ciência, a Matemática aparece como a área de conhecimento mais desenvolvida. E não podia ser de outra forma. Sem a Matemática a Astronomia como ciência é impossível. É um fato histórico o lendário nível do conhecimento matemático a que chegaram os babilônios. O “Livro de Cálculo de Ahmes” de 1700 antes de Cristo, no Egito é o mais antigo manual de matemática historicamente conhecido. A um nível de domínio da matemática e dos seus diversos campos específicos de cálculo, parecido aos babilônios e egípcios, chegaram igualmente os Indus e as altas culturas da América Central e do Sul, com destaque para os Mayas, Incas e Astecas. 

As reflexões que acabamos de fazer sugerem mais uma. Pela sua natureza é a que oferece maiores dificuldades. Falamos do tempo que foi necessário par consolidar o conhecimento ao nível em que se encontrou, a partir do momento em que dispomos de registros materiais objetivos. De quinze mil anos para trás essa história submerge nas brumas do tempo. Os registros diminuem em número e as relações entre eles apagam-se, na medida em que se recua no tempo. Os dados dispersos reduzem-se finalmente aos “machados de punho”, a mais antiga ferramenta fabricada pelo homem de que se tem notícia. Associados aos artefatos líticos foram localizados fragmentos fósseis de humanos, seus prováveis fabricantes e usuários. É óbvio que com registros materiais nessas condições não é possível, nem sequer um esboço coerente dos conhecimentos que moldaram a cultura material e muito menos a imaterial de então. Uma certeza importante, porém, nos garantem os artefatos líticos, especialmente os “machados de punho”. São o resultado da manipulação intencional dos seus autores. São provas da intervenção programada em matérias primas que foram manipuladas para servirem a finalidades previamente estabelecidas. Pressupõem, portanto, toda uma sequência de operações mentais reflexivas. Em resumo. Supõem a inteligência reflexa. Paralelamente desenrolou-se a cadeia de procedimentos que acompanharam a construção do conhecimento relacionada com aqueles artefatos. A ordem das ações pode ser desdobrada mais ou menos assim. Começa com a tomada de consciência de um desafio a ser enfrentado. Segue uma avaliação do significado para em seguida buscar os caminhos para a solução. Escolhem-se os meios, as estratégias e as ferramentas adequadas para solucionar o impasse. A lógica autoriza concluir que toda essa cadeia de atos reflexos permitiu que os humanos daqueles tempos remotos, agissem da mesma forma com os desafios da vida como nós. 

Não posso deixar passar a ocasião para propor algumas reflexões contemplando um desses “machados de punho”. Para o historiador, o antropólogo, o etnógrafo, trata-se do testemunho material objetivo mais antigo a nos falar da história do homem. Para o artesão aquele fragmento de sílex toscamente afiado por lascamento é apenas uma demonstração da penúria das oficinas dos humanos da pré-história. Para o evolucionista estamos diante de uma evidência inegável, de um estágio da humanidade tentando superar a “selvageria”. Para o sociólogo essa humanidade encontrava-se em condições que inviabilizavam qualquer progresso digno desse nome. Concedemos alguma razão a todos eles e muitos outros que costumam emitir juízos de valor sobre a realidade daqueles tempos primigênios. Acontece, porém, que essa ferramenta, “coisa de selvagem ou meio selvagem”, se avaliada como fazendo parte da construção do conhecimento, significa muito mais, infinitamente mais, do que a prova material mais antiga da presença do homem no nosso planeta. Em primeiro lugar significa a superação da ineficiência e inadequação anatômica da mão. Comparada com as “mãos” de um macaco, as garras de um tamanduá, os cascos de um cavalo, as unhas de um tatu, etc., as mãos e dedos do homem, não têm as mínimas condições de competir com eficiência com nenhum deles. Serve para agarrar, mas agarra mal; serve para cavar, mas cava mal; serve para dar um tapa, mas não chega perto do tapa de um leão. Poderíamos continuar enumerando as limitações da mão impostas pela sua natureza anatômica. Chega-se à conclusão de que ela é inespecífica, não especializada, incapaz de manipulações com uma finalidade determinada. Anatomicamente a mão é um instrumento que serve a muitas finalidades, mas a nenhuma com eficiência. Levada a questão ao extremo podemos dizer que a mão serve para tudo e, ao mesmo tempo, não serve para nada, mas por isso mesmo pode ser considerado o instrumento mais versátil de que o homem dispõe para atender às suas necessidades

A superação dessa inadequação anatômica da mão representou um dos maiores desafios para o homem, na batalha pela sobrevivência. Entrou então em ação a inteligência reflexa, recurso exclusivo do homem. É permitido imaginar como deve ter sido a reação dos nossos antepassados remotos diante dos desafios da existência. Foi preciso conseguir alimentos, foi urgente proteger o corpo contra as intempéries, foi preciso instalar abrigos, foi preciso defender-se contra as feras e contra os próprios homens. Como o aparelhamento físico-anatômico não tinha como competir com o dos outros animais, a saída foi munir-se com equipamentos para suprir a ineficiência. Pressionado pelas circunstâncias o homem recorreu ao trunfo maior posto a sua disposição: a inteligência reflexa.

Como é normal em qualquer situação, começa-se pela tomada de consciência do problema a ser resolvido. Verifica-se o seu tamanho e extensão, o nível de dificuldade para resolvê-lo, avalia-se a repercussão sobre a vida e o quotidiano das pessoas e, por fim, parte-se à procura de soluções. Mas baixemos do nível abstrato para a batalha concreta dos primeiros homens pela vida. De saída ficou claro para eles que necessitavam de “instrumentos” mais eficientes do que as mãos para cavar a terra em busca de raízes e tubérculos, caçar animais, tirar a pele e a lã e confeccionar vestimenta, separar a carne dos ossos, instalar abrigos e defender-se das feras. É complicado para nós que vivemos numa civilização que dispõe de uma parafernália sem fim para nos socorrer nos desafios mais impossíveis, fazer uma ideia mais precisa das condições em que viviam os primeiros homens. 

This entry was posted on sábado, 29 de outubro de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.