A apresentação ao público leitor das “Reminiscências” – no original: “Allerlei aus meinem Leben”, do Pe. Max von Lassberg, constitui-se, antes de mais nada, numa dívida de gratidão para com esse jesuíta filho da nobreza Bávara, que foi um autêntico “herói civilizador” de Cerro Largo e arredores, na província de Missiones na Argentina e no oeste de Santa catarina. No livro já mencionado “Um Sonho e uma Realidade” destacamos os nomes de alguns jesuítas que deram o melhor de si para implantar o “Projeto Educacional” que teve o seu ponto alto mais emblemático com a Unisinos.
Paralelamente aos “pais fundadores” e consolidadores do projeto educacional, desembarcaram, em considerável número, jesuítas de extraordinária visão dos problemas religiosos e pastorais que não afetavam somente os imigrantes alemães e seus descendentes, como toda sociedade em formação no sul do país. No início a grande maioria dedicou-se sem alarde, quase no anonimato, à pastoral nas comunidades coloniais. Seus nomes e seus restos mortais aguardam a ressurreição no cemitério da Ordem em São Leopoldo.
Em meio a essa “velha guarda” sobressaem alguns personagens que se destacaram na implantação e concretização de ambiciosos projetos de desenvolvimento e promoção humana entre 1900 e 1940. Em homenagem à sua dedicação e seus comprometimentos para o bem estar e o progresso do universo colonial, passaram para a história com os “patres collonorum – pais dos colonos”. Os nomes de não poucos permanecem na memória do povo colonial, mesmo daqueles que já não os conheceram pessoalmente: Fintan Bärlocher, Franz Murmann, Wilhelm Dörlemann, Mathias Pfluger, Jacob Fäh, Franz Schleipen, Eugen Seinhart, Johannes Hann, Julius Hornung e uma série de outros. Nesse contexto destacaram-se três personalidades, cada qual um original, sob muitos aspetos caracteres opostos, que batalharam de mãos dadas nos grandes projetos de desenvolvimento econômico e promoção humana. Falamos do suíço Theodor Amstad, que desembarcou no Rio Grande do Sul em 1884 e faleceu em São Leopoldo em 1938, do tirolês austríaco Johannes Rick vindo em 1902 e falecido em Salvador do Sul em 1946. Soma-se a esses dois o bávaro Max von Lassberg cuja atividade estendeu-se de 1888 a 1944.
Theodor Amstad concebeu e idealizou os grandes projetos de promoção humana e os pôs em maracha. Johannes Rick com seu gênio indômito e implacável removeu os piores obstáculos que ameaçavam esses projetos. Max von Lassberg deixou nos locais por ele atendidos a memória do pastor de almas incansável disposto a dar tudo de si, mesmo que fosse a vida, pelo seu amado povo colonial. Lassberg dedicou os primeiros anos da sua atividade apostólica no Rio Grande do Sul à cura de almas nas paróquias mais antigas da região do Caí e Sinos, com destaque para Dois Irmãos e Santo Inácio da Feliz.
Com a publicação em português das “Reminiscências – Allerlei aus meinem Leben”, pretende-se prestar uma merecida homenagem a Max von Lassberg que marcou como fero em brasa a vida colonial do final do século XIX e a primeira do século XXX. Percorrendo as páginas das “Reminiscências” fica difícil acreditar que um homem, desde jovem lutando com problemas de saúde, fosse capaz de acompanhar o ritmo exigido pelas obrigações pastorais da época. El mesmo conta como foi obrigado a interromper por vezes os estudos, por causa de um mal crônico que se manifestava através de persistentes dores de cabeça. Por essa razão sua formação acadêmica parece apenas ter sido a exigida para atender as comunidades coloniais. Não encontramos em seu currículo nada que o compare com o brilho acadêmico de um Schupp, Teschauer, Hafkemeyer e não poucos outros jesuítas da “velha guarda, inclusive seu irmão Josepf, doutor em Direito Canônico pela universidade Gregoriana, que também dedicou a vida à pastoral entre as comunidades coloniais alemãs, italianas e polonesas no rio Grande do Sul.
Max von Lassberg foi um gigante no cumprimento rigoroso da missão que lhe fora confiada, no quotidiano monótono e repetitivo de pastor de almas, nas intermináveis cavalgadas por todas as regiões de colonização alemã e italiana. Celebrar missas, batizar, ouvir confissões, assistir aos moribundos, presidir matrimônios, sepultar defuntos. Foi assim o seu dia a dia que começava antes do clarear e não poucas vezes emendava com a noite do dia seguinte, sem nunca ter certeza do quando descansar. Nas “Reminiscências” Lassberg nos brinda com uma pálida ideia do que significava esse cotidiano de cavalgadas intermináveis durante horas, dias e semanas por estradas quase intransitáveis ou por perigosas trilhas na mata, o sol castigando no verão, o frio congelando no inverno com os intermináveis dias de chuva comprometendo a saúde. Nem pensar numa hesitação, quando se tratava de atender prontamente o chamado para confortar um moribundo, mesmo que fosse numa noite de tempestade, numa madrugada fria e chuvosa, ou que fosse preciso cruzar um rio ou arroio transbordado. Durante 56 anos o Pe. Lassberg submeteu-se a esse ritmo frenético e desgastante, deixando algum momento de descanso para o intervalo dos compromissos pastorais. Montado em seu cavalo percorreu grande parte do Rio Grande Sul, oeste de Santa Catarina e Missiones no norte da Argentina. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, ele próprio registrou, suas andanças apostólicas por todos os recantos de rio dos Sinos e do Caí. Com a maior simplicidade descreve duas ou mais dessas viagens, sempre no lombo de um cavalo, de Florianópolis a Lages e uma de Curitiba, Lages, Florianópolis, Porto Alegre. Percorreu os recém fundados núcleos coloniais da Serra: Ijuí, Cruz alta, Passo Fundo e Erechim. Nas “Reminiscências” descreve uma série de vivências nos muitos assentamentos novos que se multiplicavam no interior desses municípios. Além de experiências pastorais propriamente ditas, oferece preciosas informações sobre as condições em que esses empreendimentos foram concretizados. O isolamento na mata virgem expunha os pioneiros a todo tipo de doenças e privações físicas, mentais e espirituais. Havia uma aguda deficiência de atendimento médico, de remédios, de assistência pastoral. Em muitos casos faltava tudo até o mais essencial em alimentação, vestuário e moradia. As colonizações da Serra serviram também de cenário a um outro fenômeno menos presente na antiga região colonial. As frentes pioneiras de descendentes de alemães entraram em contato com os descendentes de italianos, poloneses que avançavam pelo planalto e com os assim chamados caboclos, remanescentes dos bandeirantes, mestiços de lusos, índios e missioneiros.
As “Reminiscências”, além de constituir-se num documento único das práticas pastorais naquelas regiões, representam uma rica fonte de informações sobre outras questões relevantes, sobre dados etnográficos e etnológicos envolvendo questões que informam como aconteceram os encontros de etnias imigratórias mais recentes. Ao mesmo tempo mostra o perfil das políticas e modelos de colonização, tanto públicas quanto privadas, sobre a estrutura fundiária, organização e funcionamento das comunidades, organizações de autodefesa, produção, comércio, circulação de pessoas e mercadorias. Tudo isso não do ponto de vista de alguém que avalia de fora como o historiador, o economista, o sociólogo, o antropólogo, etc. munidos com seus instrumentos de pesquisa e referenciais teóricos. Os apontamentos foram escritos por alguém que percorreu por cinco décadas as regiões já mencionadas no lombo de um cavalo, enfrentando todos os imprevistos inerentes à situação histórica. Foram escritos por alguém cumprindo com dedicação total uma missão, alimentando-se do quase nada disponível, arriscando a vida ao atravessar rios e arroios transbordados, passando dias e noites encharcado, dormindo em barracos miseráveis ou simplesmente ao relento na beira de uma estrada ou trilha na floresta.