Cientista, Colonizador, Apóstolo Social, Professor
Estávamos no começo da década de 1940. Entrei no Seminário Menor de Salvador do Sul em fevereiro de 1942. No Colégio Santo Inácio, como essa instituição era mais conhecida, moravam também os professores todos padres jesuítas, os irmãos leigos e jesuítas jovens cumprindo o estágio do magistério. Grande parte dos padres professores eram ainda alemães, suíços ou austríacos natos. Donos de uma excelente formação em instituições de prestígio da Ordem na Europa, dedicavam-se de corpo e alma à formação dos um pouco mais de 100 seminaristas internos. Entre eles destacavam-se personalidades marcantes, autênticos “originais”, que exibiam em seus currículos uma excelente folha e serviços prestados à Igreja, à Ordem e à Pátria. Encontravam-se entre eles capelães militares da primeira guerra mundial, oficiais da marinha e do exército, professores calejados nas salas de aula na Europa e no Brasil, cientistas de renome, pregadores de fama e orientadores espirituais disputados.
Em 1942 integrou-se nesse grupo um personagem novo. Passava dos 70 anos, um gigante de perto de dois metros, físico robusto e postura ereta apesar da idade, cabelos castanho escuros e um olhar que penetrava até os ossos dos seus interlocutores. Silencioso passava o dia carregando para o seu quarto os fungos que coletava na magnífica mata virgem que cobria mais da metade da propriedade do colégio. Seu nome: Pe. João Evangelista Rick. Para a maioria dos seminaristas seu nome sugeria pouco ou nada. Eu o conhecia vagamente como um grande pregador respeitado e venerado pelos colonos. Havia, contudo, um bom grupo de seminaristas para quem era familiar. Tratava-se daqueles procedentes da então fronteira de colonização de Porto Novo, hoje Itapiranga São João do Oeste e Tunápolis. Esse projeto colonizador de iniciativa da Sociedade União Popular teve a sua implantação e consolidação garantida graças à capacidade de liderança, a visão profética e à determinação inquebrantável do Pe. Rick, apesar dos obstáculos vindos do próprio meio colonial, dos críticos até de dentro da própria Ordem e das autoridades eclesiásticas e dos empecilhos interpostos pela burocracia oficial. Consta dele a profecia em que afirmou, para o espanto de muitos, que “que lá no norte, onde em meio às grandes florestas, se encontram as fronteiras do Brasil com os grandes países da América do Sul ( Colômbia, Perú, Bolívia e Paraguai) localiza-se o futuro da século XX e XXI”.
Por algum tempo o Pe. Rick ministrou ainda aulas de matemática para os seminaristas. Depois que a resistência física e a saúde e as perturbações psíquicas não permitiram mais, dedicou-se inteiramente à grande paixão que o acompanhou a vida toda e tinha sido um dos motivos da sua destinação para o Brasil em 1903: o estudo dos fungos. A mata virgem preservada nas propriedade do colégio serviu então de cenário das suas incursões diárias em busca de novas espécies de fungos. Carregava-os para o seu quarto, classificava-os e os descrevia. De mês em mês viajava a Porto Alegre, onde se demorava por alguns dias no colégio Anchieta, então na rua Duque de Caxias perto da catedral. Aproveitava a ocasião para visitar seu velho amigo Borges de Medeiros que morava a poucos metros do colégio. Auxiliado pelo discípulo e amigo Pe. Balduino Rambo, aproveitava o tempo ordenando e classificando suas descobertas, pondo em dia a correspondência e pondo no papel as memórias que ocupam a maior parte da publicação que estamos oferecendo ao público.
Johannes Rick, Theodor Amstad e Max von Lassberg foram os três jesuítas que passaram para a história da colonização do Rio Grande do Sul e oeste de Santa Catarina na primeira metade do século XX, como os protótipos dos “patres collonorum – pais dos colonos”. Além de dezenas de outros nomes menos conhecidos que merecem o mesmo qualificativo. Max von Lassberg tem o seu nome imortalizado como fundador de colônias em frentes pioneiras até na província de Misiones na Argentina. Em parceria com seu amigo Karl Culmey, engenheiro agrimensor e protestante, acompanhou a implantação das colônias de Serro Azul, hoje Cerro Largo, Santo Cristo e arredores e levou dezenas de colonizadores alemães vindos do sul do Brasil para dar inicia à colonização de San Alberto e Puerto Rico no norte da Argentina. Liderou em 1902 o grupo de 11 pioneiros para dar início ao povoamento de Cerro Azul e, na sombra da floresta virgem, celebrou a primeira missa onde hoje floresce a cidade de Cerro Largo. Conduziu também o primeiro contingente de pioneiros para margem direita do rio Uruguai e, na sombra de um laranjal celebrou a missa de fundação de Porto Novo, em 31 de julho de 1926.
Em Theodor Amstad encontramos um perfil quase como que oposto ao de Johannes Rick. Filho de um comerciante atacadista de produtos agrícolas, conviveu, desde criança, com contas, números e estatísticas. Levou como herança para o resto da vida uma quase obsessão pelo pragmatismo, pela exatidão dos registros e tabelas estatísticas. Os dois grandes projetos de desenvolvimento e promoção, A Associação Rio-grandense de Agricultores e a Sociedade União Popular, o “Volksverein”, que levam sua assinatura, não foram concebidos no ar, como se fossem de um visionário. Nasceram com os pés no chão, fundamentados em bases objetivas que lhes garantiram o êxito que de fato obtiveram. Por mais audaciosos que tenham sido esses projetos não foram temerários, muito menos irresponsáveis, porque Amstad jamais teria dado um passo sem que os pressupostos para o sucesso tivessem sido exaustivamente meditados, calculados e meticulosamente dimensionados.
A Max von Lassberg e Theodor Amstad veio somar-se a personalidade avassaladora de Johannes Rick. Pouco ou nada chegado a detalhes, a registros exatos, a demonstrações estatísticas, impulsionava-o uma quase fúria do desbravador, que não perde tempo na limpeza e organização do terreno conquistado. Confiava essa tarefa a outros que o seguiriam. Ele dizia de si próprio que, se tivesse nascido na Renascença, não se se teria feito jesuíta mas um “condottieri” italiano. Essa caracterização aplica-se a ele em todas atividades que exerceu durante os pouco mais de 40 anos em que batalhou pelo bem-estar material e espiritual daqueles que lhe foram confiados. Foram muitas essas atividades, exigindo a envergadura de um gênio e a ousadia de um conquistador, para dar o lance certo no momento exato sobre o “multifacetado tabuleiro de xadrez” como costumava caracterizar a sua vida. E, nesse tabuleiro de xadrez foi preciso colocar em xeque-mate os desafios a serem enfrentados no decorrer das pesquisas com fungos, nas aulas de matemática no colégio, na cátedra de moral no seminário maior, nas obras assistenciais, nas negociações com o Presidente do Estado, no desencontro com as autoridades eclesiásticas e religiosas, na batalha contra os sofrimentos crônicos de natureza nervosa e psíquica e, de modo especial, na implantação e consolidação de sua obra maior, a colonização de Porto Novo.
Estamos assim frente a três personagens de perfil quase diametralmente opostos e, contudo, representativos dos jesuítas que a Província Alemã da Ordem costumava enviar para a Missão do sul do Brasil: o espírito de conquistador de Johannes Rick, filho do Tirol austríaco, Theodor Amstad o suíço meticuloso mas de espírito aberto e de horizontes vastos para o seu tempo e Max von Lassberg, o pastor de almas por excelência e representante emblemático do autêntico catolicismo bávaro. Apesar da originalidade, os três tinham em comum o fato terem sido representantes em cultura pura, da cepa imaginada por Santo Inácio de Loiola; de terem trabalhado até a exaustão nos grandes projetos de desenvolvimento e promoção humana, durante a primeira metade do século XX; de como “patres collonorum” terem deixado marcas indeléveis da sua passagem pela história do sul do Brasil e norte da Argentina. Por terem pregado a verdade, a justiça e o amor ao povo que lhes fora confiado, seus nomes brilharão como estrelas do firmamento por perpétuas eternidades, conforme a promessa das Sagradas Escrituras.
NB. O livro que ofereço aos interessados consta de duas partes. A primeira de uma biografia de Johannes Rick, da autoria do Pe. Balduino Rambo e publicada em alemão na revista Monfort e traduzida por mim. A segunda consta da tradução pelo Pe. Arhur Rabuske, das memórias deixadas pelo Pe. Rick, também em alemão. A edição foi da responsabilidade dos dois tradutores e dada ao público em 2004 pela Editora Unisinos.