Cem anos depois.
Até aqui tentamos apontar a trajetória da inserção dos imigrantes alemães no todo da nacionalidade brasileira ou se preferirmos na “nova pátria” durante os 100 primeiros anos. Depois da chegada da primeira leva tinham-se passado 115 anos quando começou a Segunda Guerra Mundial em 1º de setembro de 1939. Nesse meio tempo, fora implantado o Estado Novo por Getúlio Vargas, em 11 novembro de 1937. A Constituição então promulgada previa a imposição do “abrasileiramento” compulsório dos descendentes dos imigrantes de todas as procedências étnicas. Esse processo, na verdade, começou logo depois que a primeira leva de imigrantes desembarcou em solo brasileiro e se repetiu cada vez que um novo contingente se vinha somar aos que já se encontravam aqui. Mas, sobre esse encontro com uma realidade geográfica e uma realidade sócio-cultural de todo estranha aos imigrantes, já foi objeto de análise nos scapítulos que antecederam. Em resumo, nos primeiros 100 anos o “abrasileiramento” obedeceu ao ritmo e às peculiaridades antropológica e historicamente esperáveis, tomando em consideração as circunsctâncias em que aconteceu. Foi mais lento do que, por ex, nos USA pois, lá os filhos dos imigrantes nascidos no país eram obrigados por lei a aprender a língua inglesa mesmo que falassem a língua materna em família e no relacionamento quotidiano com as demais pessoas. Aqui no Brasil não havia essa obrigação legal. Como a língua representa o instrumento mais determinante da preservação da tradição cultural, a não obrigatoriedade legal de aprender o português foi, evidentemente, um fator importante para a preservação por mais tempo dos hábitos, costumes e valores.
Mas, voltando à situação criada pelo Estado Novo e a consequente Campanha de Nacionalização, a situação dos descendentes dos imigrantes no que dizia respeito à integração nacional, sofreu um choque de proporções difíceis de dimensionar. Num golpe foi proibido o uso da língua alemã não só em público como também em ambientes privados. Toda e qualquer publicação em língua estrangeira foi interditada e confiscadas aquelas que se encontravam em poder de pessoas, famílias, associações, clubes, igrejas, escolas e demais instituições. Nas missas e cultos religiosos, os sermões e homilias tinham que ser exclusivamente em português. E, para garantir a execução das determinações legais, a polícia foi mobilizada, até em comunidades remotas no inerior colonial, para garantir a observância das determinações. Chegou ao ponto de entrar nas igrejas durante a missa para recolher os livros de reza de senhoras de idade e as que se recusavam a entregar o seus, ameaçadas de prisão. Casos foram registrados em que agentes a serviço da nacionalização foram flagrados em adegas de casas para surpreender as famílias falando alemão.
O golpe mais devastador, porém, atingiu as em torno de 1500 escolas comunitárias, católicas e protestantes espalhadas principalmente pelo Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A língua de ensino na maioria delas continuava sendo o alemão e o ensino do português disciplina obrigatória a partir da terceira série. Eu pessoalmente, fui alfabetizado na escrita gótica e aprendi a ler nos célebres livros escolares da Editora Rotermund. Em dezembro de 1938 foi implantada a reforma escolar com a substituição compulsória do alemão pelo português como língua de ensino, o alfabeto gótico pelo latino, os livros didáticos tradicionais pelos novos fornecidos pela Secretaria da Educação. Os professores vindos da Alemanha foram exonerados e uma porcentagem elevada dos nativos abandonou a vocação. Como mais acima lembramos, na década de 1930, o “abrasileiramento” dos descendentes dos imigrantes caminhava, em linhas gerais, dentro do ritmo antropológico e historicamente esperado, isto é, num processo que leva gerações para ser concluído. Assemelha-se às etapas dos ciclos de vida de animais e plantas. Sucedem-se numa dinâmica que requer períodos mínimos para preparar a passagem do que deve vir depois. Uma metáfora trival para ilustrar do que estamos falando pode ser um pé de milho. A formação e o amadurecimento da espiga demanda necessariamente um espaço de tempo mínmo durante o qual se consolidam sucessivamente as diversas etapas que culminam na formação da espiga, a fecundação, o desenvolvimento dos grãos e seu posterior amadurecimento. Não há como acelerar essa dinâmica sob pena de comprometer o todo, ou simplesmente inviabilizar a sua continuidade. Não há dúvida de que estamos falando de realidades análogas que exigem as devidas reservas na sua aplicação. Mas, de qualquer forma dão uma ideia do que pretendemos ilustar. Com a nacionalização das escolas, com a proibição das línguas que não fossem o português, com a proibição da circulação de jornais, revistas, almanaques, livros e outros meios a realimentação dos valores identidários foi seriamente prejudicada. Com o transtorno causado pela intervenção nas escolas as crianças que concluíram os quatro anos obrigatórios entre 1938 e 1950 e não continuaram os estudos, formaram uma geração de semianalfabetos. O nível cultural das comunidades do interior colonial sofreu um baque difícil de avaliar. Perdeu-se o hábito da leitura por causa da falta do que ler. O alemão estava poibido e o aprendizado precário do português somado a ausência da circulação de publicações nesse idioma, resultou numa geração que mal sabia escrever o nome ou ler e fazer cálculos os mais elementares.
A esse lamentável choque cultural vieram somar-se as mudanças mundiais profundas resultados da Guerra que recém terminara. Não é aqui o lugar para uma análise mais profunda do novo quadro geopolítico, geoeconômico, geoestratégico e outras novidades que desenharam o perfil do mundo a partir de 1945. O nosso interesse centra-se no rumo e na celeridade que impulsionou a inserção na nacionalidade brasileira os descendentes dos imigrantes alemães, agora já na quarta, quinta geração. Entre os muitos fatores destacamos aqueles que foram de maior importância. Com a queda do Estado Novo, a deposição de Vargas e a redemocratização do País, os decretos, as leis que proibiram a circulação de livros, jornais, revistas almanaques e outros impressos, foram abolidas. As atividades associativas de natureza cultural, artística, recreativa e destinadas ao lazer puderam ser reativadas e novas foram criadas. Na sua grande maioria deixaram para trás o caráter étnico adotando a língua portuguesa, sem abandonar a alemã, e com isso abriram as portas dos quadros dos associados aos luso-brasileiros e demais etnias. Destacaram-se nessse processo, por ex., a Sociedade de Ginástica de Porto Alegre (SOGIPA), a Sociedade Leopoldina, a Germânia e outras em Porto Alegre, a Sociedade Orpfeu de São Leopoldo e dezenas de outras sociedades e clubes espalhadas pelo sul do Brasil, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e, em menor número, nos demais estados. Entre as novas fundadas depois da Guerra destacou-se a “Federação Cultural Alemã do Brasil” – “FECAB” em Porto Alegre, com o objetivo do cultivo da Cultura Alemã no Brasil com o mesmo feitio institucional das demais. O convívio e a participação nas atividades esportivas, culturais, artísticas, de lazer e outras, de associados de procedências étnicas variadas, a língua alemã foi perdendo espaço para o português e o intercâmbio de costumes, hábitos, valores, cosmovisões, etc., fez dessas organizações um importante fator de integração. Até meados do século passado o Brasil figurava entre os países eminentemente rurais. Essa situação foi-se invertendo, ao meu ver, por duas razões básicas: a oferta de empregos dos excedentes da população rural nas mais diversas oportunidades oferecidas pelo rápido crescimento urbano, e paralelamente, o esgotamento das áreas disponíveis para novas fronteiras da tradicional colonização em pequenas propriedades familiares, no centro oeste de Santa catarina e Paraná. A esses fatores somaram-se outros mais intimamente ligados como causas ou efeitos, ao movimento rural-urbano. As iniciativas para recuperar a escola étnica e confessional não lograram sensibilizar senão apenas alguns líderes religiosos e comunitários. Todas elas terminaram sob a jurisdição dos municípios e sob a tutela e fiscalização da proposta curricular e pedagógica orientada pelas secretarias estaduais de educação afinadas com as diretrizes do Ministério da Educação. A escola comunitária foi vitimada pelos decretos de nacionalização do ensino de dezembro de 1938 e varrida das comunidades do interior rural. E é preciso admitir, com a conivência, senão aberto apoio, da maioria dos líderes religiosos, somada ao fato de que a maioria dos colonos apoiavam a situação que os livrava do compromisso com o salário do professor e a manutenção das escolas. Daí para frente esse ônus coube às prefeituras. Professores e professoras contratadas pelo município desempenhavam sua função evivdentemente valdendo-se do português como língua de ensino. Essa situação fez com que gradativamente a nova geração fosse servir-se dela, paralelamente com os dialetos tradicionais que por um bom número de anos continuaram como a língua no diário das famílias e comunidades. Na medida em que as gerações nascidas na primeira metade do século XX, não falando ou falando mal o português, foram saindo de cena, diminui proporcionalmente o número de pessoas que somente falavam e entendiam o alemão e os diversos dialetos praticados no sul do País. Hoje são raras as pessoas mesmo de idade que, não entendem o português dos netos ou bisnetos que já não falam nem entendem o alemão.
A popularização do rádio e mais tarde da televisão fez com que os colonos das comunidades mais remotas e isoladas entrassem em contato com o mundo do qual, até então, tinham uma noção vaga, se é que tinham alguma. Seus olhos e mentes transpuseram o topo dos morros que delimitavam seu mundo comunal e tiveram acesso aos acontecimentos que movimentavam a história regional, nacional e internacional. É desnecessário lembrar que a abertura das janelas para o mundo impactou nas picadas do interior colonial com seus valores, hábitos, costumes, virtudes e vícios, até então estranhos para aqueles colonos pacatos e normalmente cultivando um modelo de vida sóbrio e austero. Sem alarde e silenciosamente esse grande mundo foi sendo incorporado no seu quotidiano do que oferecia de bom, de discutível e até de deplorável. Não demorou para que a avalanche das tecnologias de comunicação turbinadas pela revolução eletrônica derrubassem do que sobrara das barrreiras que separavam o rural do urbano quanto ao acessso em tempo real, às informações e acontecimentos de qualquer parte do mundo.
Como se pode perceber, a partir do final da Segunda Guerra Mundial os tempos mudaram radicalmente afetando em cheio o personagem humano moldado pela pequena propriedade familiar com sua produção direcionada, antes de mais nada, para suprir as demandas da família. A última fronteira de colonização ao modelo consagrado pelos imigrantes alemães, italianos, poloneses e de outras procedências da Europa, encerrou-se com a ocupação das terras ainda disponíveis no oeste do Paraná. Paralelamente à industrialização tomou fôlego e multiplicou e diversificou as oportunidades e opções de trabalho nos centros urbanos para os excedentes das famílias ainda numerosas no interior colonial. Os meios de comunicação com o acesso ao rádio primeiro e da televisão um pouco mais tarde, impulsionados pela eletrificação também do meio rural, resultaram em dois efeitos complementares. Em primeiro lugar, o agricultor entrou em contato com o que acontecia além das fronteiras que delimitavam sua comunidade e tomou conhecimento dos avanços da industrialização, da disponibilidade de tecnologias em constante aperfeiçoamento e, de modo especial das oportunidades de trabalho. Aconteceu com isso uma profunda transformação na percepção do mundo pelo agricultor. Costumes, hábitos, valores, todo um estilo de vida de “colono” transformou a cosmovisão dessa gente e moldou-a de acordo com o figurino urbano. Assistimos a uma autêntica urbanização das mentes. As famílias numerosas de 10 ou mais filhos foram dando lugar a casais com dois ou três filhos no máximo. Em segundo lugar, a oferta de oportunidades de trabalho desencadearam uma crescente onda migratória do meio rural para o centros urbanos. Em poucas décadas inverteu-se a situação do Brasil de um país predominantemente rural para um país em urbanização acelerada. Hoje as tecnologias de comunicação permitem aos agricultores conectarem-se com o mundo todo até nos intervalos dos trabalhos na lavoura. Aos filhos dos colonos ofereceram-se mais e mais oportunidadess e facilidades para se formarem no ensino médio e terem acesso ao superior. Com os respectivos certificados e diplomas na mão, o leque de oportunidades de trabalho se multiplicaram absorvendo uma porcentagem importante da mão de obra disponível no meio rural. Inúmeros filhos e filhas de agricultores encontraram trabalho na construção civil, no setor de serviços, no exercício de profissões liberais, no comércio, nas indústrias, no funcionalismo público, nas forças armadas e por aí vai. O processo de urbanização daí resultante exigiu e continua exigindo empenho crescente das administrações públicas responsáveis, no limite de suas competências, no disciplinamento da formação de sempre novos bairros periféricos. São fundamentais nesse esforço políticas, ações e estratégias centradas no saneamento básico, abastecimento de água potável, mobilidade urbana, escolas e educação, saúde pública e, sobretudo, o acesso aos produtos que formam o complexo de uma alimentação qualitativa e quantitativamente adequada.
O “trabalho” é um dos pressupostos para a realização integral das pessoas, do “humano no homem” – “die Menschlichkeit”. É importante refletir sobre essa questão não apenas de forma teórica e abstrata, mas inserida num contexto regional concreto, por ex., o vale do rio dos Sinos, do Cai, do Taquari e outros. Requerem-se propostas tecnicamente elaboradas por equipes devidamente credenciadas e habilitadas para tanto. Depois de nos demorarmos em mostrar a dinâmica da urbanização impulsionada pela industrialização e seus reflexos sobre a infraestrutura, sobre a revolução social, cultural, econômica, etc., inerente ao próprio fenômeno da passagem da cosmovisão rural para a urbana, um outro complexo de potencialidades da região, chama a atenção. A geomorfologia dos curso médio e superior do Sinos como dos demais rios que terminam no Guaíba, não permitem monoculturas ao modelo do grande agro negócio. As florestas originais que cobriam as várzeas dos rios e arroios e subiam até as bordas dos Campos de Cima da Serra, deram lugar à pequena propriedade familiar, em torno de 70 hectares no começo. A produção diversificada destinava-se, em primeiro lugar, para o sustento da família. Passados 200 anos depois do desembarque dos primeiros imigrantes, os lotes coloniais foram sucessivamente repartidos para 10 ou menos hectares. A agricultura familiar e a criação de animais domésticos caminha para a extinção. Em outra ocasião, mais acima, já nos referimos aos efeitos dessa mudança. Nas encostas dos morros onde há 70 anos as roças de milho, feijão, batata, mandioca subiam até onde era possível a prática da agricultura de enxada, foram substituídas e estão sendo tomadas por uma floresta secundária parecida à original ou reflorestadas com acácia e/ou eucalipto. Por estranho que possa parecer nesse cenário que vai tomando conta do espaço da agricultura familiar abrem-se perspectivas para implantar um modelo de produção que encontra na expansão urbana um potencial de consumo em contínuo crescimento. Vai nessa perspectiva que aponta para a solução tanto da produção de alimentos quanto da abertura de postos de trabalho para os que se sentem atraídos por um estilo de vida e, ao mesmo tempo, por uma realização profissional e pessoal fora da rotina e das opções que oferecem os centros urbanos. Isso vale tanto para os filhos dos agricultores, mesmo que concluam o primeiro ou segundo grau, quanto para àqueles jovens que conquistam títulos universitários. Aliás são mais do que louváveis as escolas de agronomia, veterinária, engenharia florestal e outras que oferecem em seus currículos opções para os alunos se especializarem para atuar e assim melhorar os resultados nesse setor de vital importância para cobrir as demandas do quotidiano dos centros urbanos.
Essas obsersvações aplicam-se por ex., às condições geomorfológicas, geográficas, demográficas, econômicas e demandas de abastecimento em geral, aos vales dos rios que convergem para a capital e terminam no Guaíba, com acabamos de lembrar. Vale a pena comentar algumas das sugestões mais relevantes deixadas pela equipe de técnicos responsável pelo projeto de “Valorização do Vale do Rio dos Sinos”. O lugar da tradicional policultura de subsistência pode ser perfeitamente preenchido com a produção de hortaliças e legumes para suprir a demanda em franco crescimento com a expansão urbana. Para tanto há áreas disponíveis com solos adequados em toda a extensão do vale. A configuração topográfica, tipo de solos e variação climática permitem o desenvolvimento da fruticultura de todas as espécies, menos as eminentemente tropicais, sempre bem vindos para o consume local e regional. Nos espaços planos e nas meias encostas os cítricos, pêssegos, figos, uvas de mesa, abacate e outras variedades subtropicais, encontram condições propícias para render bons dividendos para quem os cultivar. Mais para o alto, de 500 metros ou mais podem ser cultivadas peras, maçãs, ameixas, marmelos e outros que exigem temperaturas mais baixas por um bom período do ano. Todas essas áreas oferecem condições favoráveis para pastagens e criação de gado leiteiro. Mas há um outro setor de não pouca importância. Falamos do reflorestamento com espécies de uso diário como acácia e eucalipto para lenha e tanino a primeira e madeira para a construção e lenha a segunda. Todas essas atividades, praticadas com o uso das modernas tecnologias de manejo oferecem um potencial difícil de dimensionar de mão obra e, portanto, perspectivas de trabalho saudável e retorno garantido para quem se interessar, independente do nível de formação escolar ou acadêmica. A posse do conhecimento teórico e prático da realidade agrária e o emprego da tecnologia abre espaço para técnicos e técnicas formadas em escolas de nível médio e agrônomos e agrônomas, veterinários e veterinárias, portadores de diploma universitário. A combinação do trinômio trabalho-produção-abastecimento com o trinômio natureza-preservação-cultivo temos em mãos o pressuposto para fazer do vale do Sinos e de muitos outros ecossistemas humanizados altamente produtivos, ecologicamente equilibrados, esteticamente belos. “Deus colocou o ser humano no jardim recém-criado, não só para cuidar e guardar o existente, como também para trabalhar nele e cultivá-lo afim de que produza frutos”, observou o Papa Francisco na “Encíclica Laudatdo si”.