A Educação do Corpo – “Turnen”
Os imigrantes alemães ao se estabelecerem no Sul do Brasil, implantaram um paradigma social, cultural, econômico e religioso, até então inédito no País. O Governo Imperial destinou-lhes grandes áreas de terra cobertas com mata virgem no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A demora pela distribuição dos lotes, promessas não cumpridas por parte de funcionários destacados pelo governo para supervisionar os assentamentos, a ausência de uma ajuda governamental efetiva, o total desconhecimento do entorno geográfico, social e cultural, a natureza hostil, a falta de prática no enfrentamento da mata virgem e na sua transformação em terra arável, fizeram a vida dos pioneiros muito dura nas primeiras décadas. Os imigrantes foram entregues à própria sorte e o sucesso ou o fracasso dependiam exclusivamente deles próprios. Haviam partido da Alemanha com a firme determinação de nunca mais retornar e ao mesmo tempo construir uma nova querência na distante e desconhecida terra chamada Brasil. Entretanto não voltaram as costas para a tradição cultural alemã. Pelo contrário. Foi exatamente desta fonte que hauriram as energias e a perseverança para enfrentar todas dificuldades no afã de domar a mata virgem brasileira e legar aos filhos e netos um futuro seguro e despreocupado.
Depois que as primeiras dificuldades haviam sido superadas, os primeiros taliões de mata virgem transformados em terra arável e a primeira colheita amadurecida, as famílias dos pioneiros reunira-se para lançar os fundamentos de um convívio social sadio. Onde dois alemães se encontram, diz o ditado, aí funda-se uma comunidade, uma associação, uma sociedade ou um clube.
Uma comunidade típica de colonos alemães no Sul do Brasil, oferece uma organização tal que atenda às preocupações maiores dessa gente. Quer dizer: a preservação do espírito e da prática religiosa, a formação escolar elementar mínima. A igreja, a escola, o cemitério, a casa de comércio, o salão comunitário, a ferraria, o moinho, a serraria, a sapataria, etc., não podiam faltar em lugar nenhum. Ainda hoje igreja e escola significam nas pequenas e grandes comunidades a condição mínima, para se poder falar em uma comunidade.
Pode-se afirmar que nesse sentido os imigrantes alemães não inventaram nada de novo para sobreviverem e prosperarem em meio ao mundo ambiente desconhecido. Também na velha pátria a igreja e a escola constituíam-se nos instrumentos mais importantes para enfrentar a deterioração e degenerescência cultural e religiosa. O ajustamento às circunstâncias peculiares do sul do Brasil, recorrendo aos mesmos instrumentos pedagógicos, fez com os colonos alemães, católicos e protestantes, fossem cristãos praticantes e que entre eles se contassem muito poucos analfabetos.
Uma avaliação semelhante pode ser feita em relação ao esporte, à pratica do “Turnen”, dos exercícios físicos visando a educação do corpo. As décadas de 1850 e 1860 podem ser consideradas como o marco referencial para a consolidação da imigração alemã. No interior floresciam centenas de comunidades, solidamente alicerçadas sobre suas igrejas, escolas, casas de comércio e artesanatos. Na capital do estado, Porto Alegre, e nas florescentes cidades do interior, comerciantes, artesãos, técnicos, profissionais liberais, professores, religiosos,.....organizaram as comunidades alemãs urbanas. Também essas comunidades urbanas católicas, protestantes ou liberais, faziam da preservação da identidade uma das preocupações maiores da atividade comunitária. A par da igreja e da escola serviam-se da vida associativa como instrumento permanente para perpetuar a sua maneira de ser alemã, o tempo que fosse possível, mas adaptando-o paulatinamente às circunstâncias peculiares Brasil. E, como um dos meios mais eficientes ao lado do canto, da música, do teatro, etc., multiplicaram-se por toda a parte instituições destinadas aos exercícios corporais, ao “Turnen”, à ginástica, enfim à educação e ao disciplinamento do corpo.
A intenção do presente texto consiste em avaliar o papel da educação do corpo como instrumento importante na preservação da identidade. Essa questão assume características peculiares em situações históricas determinadas. Por isso mesmo, ao avaliar a importância dos exercícios físicos regulares, a ginástica, a educação do corpo, entre os imigrantes alemães e seus descendentes, é forçoso referenciar a análise às condições ambientais, sociais e culturais específicas da região. Os imigrantes alemães que aí se fixaram, formavam um grupo minoritário em meio à população luso-brasileira original, aos hispânicos e outros que povoaram a região. Transferiram-se para cá de forma definitiva, sem a intenção, mesmo remota, de algum dia retornarem à terra d origem. Pelas leis do Pais os filhos e os filhos dos filhos, nasciam como cidadãos brasileiros. O entorno social e cultural, predominantemente luso-brasileiro, somado ao português como língua oficial e a consciência, a cada geração mais nítida, do seu pertencimento à nação brasileira como cidadãos, pos em marcha o processo de inserção dos assim chamados “alemães” no todo da nacionalidade brasileira, não apenas sob o aspecto jurídico como, de modo especial, no plano cultural. Em outras palavras, o “abrasileiramento” no seu sentido global foi-se impondo progressivamente. Na fase mais característica do processo, entre 1920 e 1940, essa identidade em transição costuma ser definida como “teuto-brasileira” ou “teuto-brasileirismo”. Teutos porque continuavam fiéis aos valores, às tradições e, principalmente, à língua. Brasileiros porque assumiam conscientemente a condição de cidadãos brasileiros natos com todas as consequências inerentes a essa situação legal.
Foi a serviço dessa trajetória de inserção na realidade brasileira que os imigrantes e seus descendentes recorreram a educação do corpo nas sociedades, nos clubes, nas instituições de ensino, como instrumento com duplo objetivo. De um lado havia o empenho em preservar de alguma forma, a herança cultural transmitida pelos antepassados e, neste contexto, a língua ocupava um lugar privilegiado. De outra parte havia também a consciência nítida que não havia como não encontrar caminhos para uma inserção cada vez mais profunda e mais definitiva na nacionalidade brasileira. Nessa dinâmica a questão de fundo resumia-se em encontrar a via mais normal possível para colocar a serviço da nacionalidade em construção todo o potencial contido na tradição cultural. Nesse particular os teuto-brasisleiros costumavam pautar a sua ação como cidadãos de acordo com a seguinte lógica: A pessoa que renega a sua tradição e por isso mesmo a sua identidade, não passa de um mercenário, dum aventureiro, que vende seus préstimos àquele que. lhe oferece o preço mais alto. Como tal jamais será um cidadão confiável. Portanto a fidelidade às tradições constitui-se num pressuposto de cidadania, numa garantia de patriotismo. Essa lógica compreensivelmente não foi entendida e, por isso mesmo, não aceita pelo universo luso-brasieliro em geral. Por um longo período, principalmente durante as quatro primeiras décadas do século XX, motivou temores e suspeitas sobre os reais sentimentos, sobre as verdadeiras intenções e a real posição dos teuto-brasileiros no tocante à cidadania.
Submetendo a história e a dinâmica do associativismo entre os teuto-brasileiros a uma análise um pouco mais profunda, transparece com mais ou menos evidência o que já foi apontado acima: o cultivo e a preservação dos valores culturais trazidos como herança, a formação do caráter e da personalidade que iriam transformá-lo num cidadão existencialmente comprometido como brasileiro. E os fatos não deixam dúvidas sobre o acerto dessa visão histórico-antropológica dos imigrantes e seus descendentes.
Na obra comemorativa do primeiro centenário da imigração alemã no Rio Grande do Sul, intitulada “ Cem Anos de Germanidade no Rio Grande do Sul – 1824-1924 (Hundert Jahre Deutschtum in Rio Grande do Sul – 1824-1924), são enumeradas 324 associações , mais de 300 no Rio Grande do Sul. Entre elas enumeram-se sociedades de canto, de teatro, de orquestra, de fotógrafos, para fins múltiplos e até clubes para fumantes. Mas o que mais cai em vista é a alta porcentagem de associações de canto e número ainda maior de associações e de clubes que se destinavam de alguma maneira a exercícios corporais e o bem estar do corpo. São 150 num número total de 352. Diversas modalidades de esportes podem ser encontradas: andar a cavalo, bolão, tiro ao alvo, etc., Sobressaem de modo especial associações e clubes de ginastas (Turnvereine e Turnklubs) e entre eles o mais importante a Federação dos Ginastas, o “Turenrbund”, a SOGIPA. A publicação comemorativa citada mostra resumida e objetivamente a importância dessas associações e clubes para a maneira de ser alemão ou melhor para a maneira de ser teuto-brasieliro.
Não é possível fazer justiça à Federação dos ginastas no âmbito dos breves dados sobre a vida associativa alemã no Rio Grande do Sul. Seria necessário escrever uma extensa monografia, mesmo que fosse apenas para dar uma noção do que essa Associação realizou para o aprimoramento corporal e moral da juventude teuto-brasileira de Porto Alegre, especialmente na condução exemplar do presidente J. Aloys Friederichs. A atuação da Federação de Ginastas é um hino de louvor ao idealismo alemão, à coerência e à persistência na perseguição dos objetivos que se julgam os acertados. Apoiado pelas simpatias e pela sustentação de praticamente toda a germanidade da capital, a Federação pode ser considerada a Associação profana mais popular e mais profundamente ancorada em extensas camadas, comprovado pelo elevado número de associados. (Amstadt, 1999, p.)
Num pais como o Brasil em cuja formação concorreram e concorrem ainda hoje, representantes dos grupos étnicos de alguma fora significativos, a questão da etnicidade ou melhor da identidade étnica assume, a certa altura, um papel de relevância toda especial. Manifesta-se claramente na fase inicial do encontro de diversas etnias num contexto de imigração. Essa situação encontra-se magistralmente resumida e expressa em moedas norte americanas: “ex pluribus unum – “de muitos povos origina-se um”. A expressão poderia constar sem retoques e com o sentido exatamente idêntico, em moedas brasileiras, pois o afluxo imigratório nos dois países foi alimentado por uma heterogeneidade étnica muito parecida.
A gênese das nações oriundas de raízes étnicas múltiplas começa com a predominância do aspecto “pluribus”. Por uma ou duas gerações, dependendo das circunstâncias geográficas somadas ao entorno social e cultural em que o imigrante foi colocado, além das leis que regem cada caso e disciplinam a imigração, observa-se a tendência de os diversos grupos étnicos desenvolverem mecanismos de defesa para sobreviverem às dificuldades iniciais. Entre esses mecanismos de defesa o agrupamento por etnias, a preservação dos valores culturais e, principalmente, da língua desempenham um papel fundamental. Em princípio esse fenômeno não tem nada a ver com um enquistamento intencional e muito menos com a resistência a uma inserção comprometida na nacionalidade a que os imigrantes passam a pertencer para o futuro. No momento em que esse tipo de fatos se verificarem, devem ser creditados a causas alheias ao fato em si da imigração. Tomando o exemplo dos imigrantes alemães, a relativa demora e lentidão que caracterizou a sua inserção definitiva no todo da nacionalidade brasileira, ou como se costumava dizer, nos eu “abrasileiramento”, tem a sua explicação em várias razões peculiares dessa imigração no decurso do século XIX principalmente. As terras a ela designadas eram formadas por um complexo de matas virgens no centro, no noroeste e norte do Estado do Rio Grande do Sul, enfaixadas no centro sul e no nordeste pelos campos naturais, configurava um eficiente isolamento geográfico. O regime da pequena propriedade familiar, voltada para a policultura de subsistência implantado na região, distanciava os imigrantes ainda mais dos luso-brasileiros, donos das vastas estâncias de criação extensiva de gado. Não havia como trocar experiências entre os dois modelos agrários e se houvesse não tinham como, pois se tratava de duas tradições muito diferentes que se valiam de línguas muito distantes entre si. O resultado não podia ser outro. Em linhas gerais os imigrantes organizaram suas comunidades inspiradas no modelo que haviam deixado nas diversas regiões da Alemanha de onde procediam. Fizeram-nas funcionar de acordo com as tradições e costumes que haviam trazido e fizeram do dialeto de cada grupo em particular a sua língua de comunicação quotidiana. A impotência ou o desinteresse do Estado pela educação, fez com eles próprios se encarregassem do ensino e da educação dos filhos, construindo escolas, contratando professores, determinando conteúdos programáticos, implantando uma filosofia pedagógica própria e zelando pelo aprimoramento e a ampliação da oferta. Além desses fatores a distância física das instâncias do poder, principalmente o imperial nas primeiras décadas e, a partir de 1889, as republicanas no Rio de Janeiro, fez com que as comunidades de imigrantes no extremo sul do Pais se consolidassem e multiplicassem como que à margem do Brasil oficial. A não existência de leis específicas que dispusessem sobre o disciplinamento da inserção do imigrante como, por ex., a obrigação de os nascidos aqui aprenderem o português, reforça a explicação da lentidão do processo.
Pode-se afirmar sem maior risco de errar que o “Turnerbund”, a Federação dos Ginastas foi o protótipo da educação, da formação do caráter, da maneira ser teuto-brasileira, no sentido mais amplo do termo. Neste sentido quero destacar o seguinte na Federação dos Ginastas.
Em primeiro lugar impõe-se o fato de que a ginástica, o “Turnen”, a educação física, o aprimoramento físico do corpo, por meio dos mais diversos exercícios, perseguia um objetivo bem mais elevado e mais amplo do que a mera saúde e bem estar corporal. Toda essa atividade fundamentava-se na filosofia de que um corpo sadio e harmonicamente desenvolvido se constitui no pressuposto para o cultivo do idealismo alemão, da coerência e da persistência na perseguição dos objetivos que se julgam acertados.
Em segundo lugar, a resposta correta do que se entende como objetivo, foi dada por Friedrich Ludwig Jahn, o pai da educação do corpo, do “Turnen” no seu sentido original. O desenvolvimento harmonioso e a saúde corporal, “mens sana in corpore sano” – “uma mente sadia num corpo sadio”, serve como instrumento na edificação da nação. Esse objetivo é alcançado por meio de um esforço sistemático, permanente, persistente, na busca de uma formação completa, de um aprendizado sólido, de um esforço permanente, e de não se deixar desencaminhar por nenhuma tentação e não entregar-se a diversões nocivas à virtude.
Em terceiro lugar, a formação do corpo ao lado dos demais recursos da educação, é colocada como finalidade maior a serviço da formação ética e moral da pessoa, para desta maneira servir de pressuposto para uma sólida e harmoniosa edificação da nação. Uma pessoa destituída de moral, de ética não é confiável. Assemelha-se a um legionário estrangeiro que vende seus préstimos de aventureiro para aquele que lhe paga o maior preço.
Quarto. “Turnen”, ginástica, exercícios corporais em todos as suas modalidades, perseguem uma compreensão holística da pessoa, isto é, a disciplina corporal, a postura ética e moral sólida e coerente, devem servir como fundamento inabalável e duradouro para o Estado e a Nação.