Bicentenário da Imigração - 66

Nas pgs. 425-467 do Relatório II, consta o registro de correspondências  apreendidas pela polícia. Trata-se quase que exclusivamente de cartas escritas por Erwin Becker, entre 1935 e o primeiro semestre de 1939. Apresentam uma boa radiografia sobre a natureza das atividades da Juventude Teuto-Brasileira, já que o missivista foi um integrante ativo da organização. Reforçam  o fato de que a Juventude Teuto-Brasileira gozava, até o advento do Estado Novo, ampla franquia legal para funcionar. É significativo o fato de a Rede Ferroviária ter colocado à disposição dos jovens uma composição a fim de leva-los a um acampamento em Neu Würtenberg (Panambi). Implantado o Estado Novo, a Juventude Teuto-Brasileira teve o mesmo tratamento que tiveram os partidos políticos. Foi extinta. Como qualquer outra agremiação, teve suas programações, reuniões, assembléias e acampamentos proibidos.

A correspondência confirma o conteúdo dos depoimentos de que acima se falou. A Juventude Teuto-Brasileira estava desarticulada. A tentativa de legalizar um sucedâneo no Ministério da Justiça sob a sigla UJTB, União da Juventude Teuto-Brasileira não logrou êxito. 

De toda a correspondência apresentada pelo Relatório II, não se consegue, a rigor, deduzir uma prova com peso suficiente para transformá-la num dos vilões responsáveis pela difusão  do quinta-colunismo nazista no Estado. Antes da sua interdição legal agiu abertamente como qualquer outra organização do gênero. Depois de proibida, deixou de representar  um perigo real por uma razão muito simples. A policia lacrou-lhe as portas, confiscou-lhe os arquivos e submeteu seus dirigentes e seus associados  a uma severa vigilância. Essas precauções  teriam sido mais do que suficientes para resolver a questão.

A sétima parte do Relatório II é dedicada à “Liga União Colonial do Reich” (Reichskolonialbund). A questão é apreciada  em apenas meia dúzia de páginas. Tudo o que a Policia achou de relevante para registrar, foram os estatutos da organização e a fotocópia  de uma carteira de sócio, pertencente a Adolf Reinhard Brandon, domiciliado em Cruz Alta. Pelos estatutos  a Liga Colonial do  Reich, propunha-se como finalidades: 

( ... ) vivificar e reformar a questão colonial entre o povo germânico na base da ideologia nacional-socialista. 

Neste empreendimento era parte da convicção, que a a Alemanha não pode abster-se  de uma atividade colonial, de acordo com as suas necessidades vitais e com sua capacidade industrial, e por isso necessita de colônias.

A devolução das colônias alemãs é encarada como uma questão de honra e direito germânico. A Liga quer converter a compreensão da política  nacional-socialista numa causa popular para todo o povo germânico, principalmente para as mulheres e a juventude alemã a ser o centro espiritual nessa tarefa. (Relatório II, 1942, p. 467).

Sob o aspecto organizacional apresenta-se  a Liga Colonial do Reich como um complemento importante do NSDAP ou do Partido Operário Nacional-socialista Alemão. Em princípio as sedes regionais e sua organização  localizavam-se no mesmo  local da sede do partido.

Os estatutos reproduzidos no Relatório, datam de 12 de junho de 1936. Pelo que parece legítimo deduzir a partir deles, na parte que fala das finalidades, a Liga Colonial do Reich, propunha-se a lutar antes de mais nada pela reconquista das colônias perdidas  quando do término da Primeira Guerra Mundial. Argumentam os estatutos com o direito que a Alemanha teria com relação à possessão  de colônias, para atender às exigências da industrialização e à conquista do espaço vital necessário para a expansão do germanismo. 

Embora os estatutos indiquem que a organização destinava-se, em primeiro lugar, para recuperar as colônias da África e as possessões marítimas do Índico e do Pacífico, fica implícita a defesa do direito de conquista do “espaço vital”, o “Lebensraum”, para a materialização do pangermanismo. 

O que interessa de perto aqui resume-se na questão se a Liga  Colonial do Reich significou objetivamente  aquela ameaça que os termos do Relatório lhe pretende atribuir. Analisando a questão hoje, tantos anos depois, parece haver também nisso uma boa dose de exagero. As razões são várias.

Primeiro. Os núcleos regionais da Liga, se existiram, foram postos fora da lei, como aconteceu com a JTB, com o NSDAP, com todas as outras associações teuto-brasileiras  e com partidos políticos brasileiros, quando foi implantado o Estado Novo. Com as sedes lacradas, os documentos apreendidos e os associados e líderes dispersos, proscritos, expulsos do País, encarcerados ou confinados, foi-se no mínimo noventa por cento da sua periculosidade. 

Segundo. Foi exagerado o potencial de a Liga representar o papel  de cabeça de ponte no esforço de submeter ao jugo nazista, em regime de dominação colonial, estados inteiros do Brasil, ou províncias inteiras da Argentina e do Chile. 

Terceiro. Uma organização do tipo “Liga Colonial do Reich” significava talvez alguma motivação  para grupos pequenos e restritos de pessoas de nacionalidade alemã ou com dupla nacionalidade. Para a grande massa de teuto-brasileiros  de terceira ou quarta geração, os apelos colonialistas nada significavam e por isso mesmo eram incapazes  de sensibiliza-los e menos ainda empolgá-los.

O último segmento do Relatório II ocupa-se com o boicote comercial praticado por firmas importadoras e exportadoras da Alemanha em relação a parceiros aqui no Brasil. Os critérios para que alguém ou alguma firma fosse boicotada podiam ser três: motivos raciais, especialmente quando envolviam judeus; firmas teuto-brasileiras que hostilizavam o nacional-socialismo; firmas luso-brasileiras pelos dois motivos. O caso mais emblemático aconteceu com a Editora Metzler Ltda. Seu proprietário, Franz Metzler, combatia publicamente o nazismo no seu jornal “Deutsches Volksblatt”, o jornal de maior prestígio entre os teuto-brasileiros católicos. Hostilizava  o nazismo por razões políticas e principalmente por motivos religiosos. Como jornal católico de grande penetração no meio católico, fustigava o lado antirreligioso e imoral do nacional-socialismo.

Um outro alvo do boicote foram os exportadores de fumo que de alguma maneira não seguiam à risca as exigências dos importadores alemães no que se referia  à manutenção de funcionários ética e ideologicamente  contrários ao nazismo. 

A Câmara de Comercio Brasil-Alemanha estava encarregada de fornecer as informações sobre a orientação político-ideológica  e a identidade étnica. Ao aceitar essa incumbência a Câmara de Comércio intrometeu-se em assuntos que, de forma alguma, condiziam com a sua função como intermediadora do comércio entre os dois países. Imiscuindo-se em assuntos político-ideológicos, descambou para o terreno da ilegalidade e a competência de interferir cabia à Policia Federal. 

O episódio da prática de boicote sugere duas reflexões.

A primeira relaciona-se com o boicote da exportação de fumo. Tratando com discriminação firmas brasileiras de exportação  por motivos étnicos, políticos  e ideológicos.  Pelo que dá  a entender o Relatório, o boicote comercial visava quase que exclusivamente o tabaco no Rio Grande do Sul. A ameaça que essa prática ilegal pudesse afetar substancialmente a capacidade brasileira de amealhar divisas via exportação, parece remota.

A segunda reflexão é sugerida pelo episódio da discriminação envolvendo a Editora Metzler Ltda. e seu jornal “Deutsches Volksblatt. Como consta no Relatório, a Editora foi perseguida  por se ter posicionado abertamente contra as pregações nacional-socialistas. Acontece que o “Deutsches Volksblatt”, quando da proibição das publicações em língua alemã, teve a sua circulação também interditada. O mesmo aconteceu com outros jornais, almanaques, periódicos, etc., de orientação religiosa, nas quais o nazismo sofria severas criticas devido ao seu discurso  e ação anti-religiosa. 

Analisando a questão, parece que os nacionalizadores assustados  com a penetração da ideologia nazista, cometeram um equívoco lamentável ao jogar na vala comum da proscrição um “Deutsches Volksblatt”, junto com panfletos, volantes, jornais e tablóides, abertamente a favor e a serviço da ideologia nacional-socialista. É mais um fruto da confusão em que língua, cultura, hábitos, valores, etc., eram considerados como sinônimos de ideologia política. Se, ao contrário, os agentes da nacionalização tivessem incentivado os responsáveis pelos jornais  e outras publicações  em língua alemã anti-nazistas, teriam a favor de si os aliados mais eficazes para imunizar de vez a grande massa de teuto-brasileiros contra a ideologia estranha. Em nome de um nacionalismo mal entendido, xenófobo e beirando as fronteiras da paranóia, jogaram fora uma das armas mais poderosas que tinham em mãos. O resultado não poderia ter sido outro. Provocaram uma animosidade  generalizada contra a nacionalização e deixaram as comunidades teuto-brasileiras  expostas à propaganda clandestina. A população de origem  alemã privada dos seus jornais e privada das suas pregações dominicais, tornara-se perigosamente  vulnerável  às investidas de qualquer um que lhes falasse numa língua que defendia seus valores e hábitos, mascarando ideologias estranhas.

Ressalvadas as proporções, aconteceu aqui um fenômeno semelhante àquele que se deu quando os exércitos alemães invadiram a Rússia. Os aldeões da Ucrância  foram a seu encontro, saudando-os como libertadores. Em vez de retribuir a disposição daquela gente de se ver livre do jugo bolchevista, os comandantes alemães ordenaram  a tática da terra arrasada. Cometeram assim o erro mais elementar  e, a longo prazo, fatal. Em vez de solidificar uma aliança espontânea  com os camponeses da Ucrânia, sem o menor motivo, fizeram deles um enorme potencial de  resistência e de sabotagem. Se as tropas alemãs tivessem acolhido a aliança oferecida pelos urcranianos, com muito  probabilidade não teriam amargado as derrotas que se seguiram.

Algumas conclusões
Concluímos com isso as breves  considerações sobre o Relatório II, elaborado pelo DOPS, sob a coordenação da Chefatura da Policia. Resumindo, creio que se pode registrar entre outras as seguintes constatações.

Primeiro. O Relatório ocupa-se, sem dúvida, com uma série de fatos que de forma alguma poderiam ter sido ignorados pelas autoridades tanto civis como policiais. Entre eles, destaca-se a tentativa de instalação de um radio transmissor de longo alcance no navio alemão “Rio Grande; a posição declaradamente favorável ao nazismo de certos lideres religiosos; o rumo que uma série de organizações teuto-brasileiras começavam a seguir; a orientação de setores da imprensa veiculando matérias favoráveis à ideologia nacional-socialista. Nenhuma dessas e de outras questões permitia qualquer tibubeio. Era preciso enfrentar com vigor o mal no seu nascedouro e, desta maneira, atalhar seus efeitos. 

Segundo. Outras questões, como foi a de legalizar União da Juventude Teuto-Brasileira, posta fora da lei; o episódio do boicote comercial; a acusação  contras os pastores  evangélicos como porta vozes disfarçados do nacional-socialismo, etc. parecem pouco relevantes quando encarados com seriedade e objetividade. 

Terceiro. Ao analista de hoje salta aos olhos o exagero no significado que se atribuiu indistintamente a todos esses fatos. As circunstâncias criadas pelo envolvimento progressivo do Brasil no conflito mundial explicam de alguma forma a reação das autoridades  municipais, estaduais e federais. Não justificam, porém, atmosfera de pânico e terror que espalharam entre as populações  de origem alemã.

Quarto. A consideração mais importante, entretanto, refere-se a outra faceta da questão. A maioria dos episódios continha, de fato, um potencial de periculosidade nada desprezível. Todos eles, contudo, limitavam-se a grupos e circunstâncias  localizadas e identificadas. A polícia dispunha de instrumentos para neutralizá-los na sua ação. De outra parte, oitenta a noventa por cento da população de teuto-brasileiros, encontrava-se fora do alcance e da influência exercida  pelos postos avançadas do nazismo. Listar qualquer teuto-brasileiro no rol  dos nazistas, constituiu-se num funesto equívoco. Essa grande massa  de cidadãos brasileiros de origem alemã nada mais ambicionava  do que pôr em prática a sua cidadania através do trabalho honesto, cumprindo assim suas obrigações cívicas e religiosas. O nazismo pouco, melhor dito, nada tinha a lhes oferecer. A maioria o rejeitava por causa do seu combate à religião e religiosidade. 

Com tudo isso não se pretende afirmar que não se desse importância  às organizações e aos indivíduos  comprometidos com a propaganda do nacional-socialismo. Seu número e, principalmente, sua virulência e fanatismo exigiam das autoridades responsáveis uma postura firme. Uma investigação inteligente, seguida de uma ação policial eficiente, os teria reduzido à inanição, dispensando esforços e  aparatos excepcionais. No País existiam leis suficientes e eficientes para o caso e, em tempo de guerra, acresciam ainda as regras próprias para a situação, fruto de tratados internacionais. O perigo alemão no Sul do Brasil foi exagerado e transformado num monstro que na realidade não passava de um caso de policia, um pouco mais complicado do que os do dia a dia.

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