Bicentenário da Imigração - 58

O Relatório continua sua exposição sobre as atividades nazistas nos estados do Sul do Brasil, reproduzindo uma matéria publicada  no Times de Londres, no dia 3 de setembro de 1937, reproduzido  no Diário de Notícias de Porto Alegre no dia seguinte, 4 de setembro. Levava como título: As atividades alemãs no Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Antes de tentar avaliar  o conteúdo do artigo do Times, convém assinalar um detalhe. A data da publicação antecede à implantação do Estado Novo e à Constituição imposta de  novembro de 1937. Até aquele momento não havia no Brasil nenhuma restrição de formação de agremiações de caráter político, profissional, cultural, religiosa e outras. O aparecimento, portanto, de organizações de caráter político e ideológico do NSDAP, eram esperáveis num clima democrático como era vigente até então no Brasil. As coisas mudaram depois da implantação do Estado Novo e a proscrição das  agremiações comprometidas coma difusão de natureza étnica e político-ideológico.

De outra parte, as relações diplomáticas e comerciais do Brasil com Alemanha fluíam normalmente, como é usual entre duas nações  amigas. O excesso ou o suposto excesso  das atividades nacional-socialistas no Brasil deveria ser tratado no nível dos canais da diplomacia. Sendo assim, parece no mínimo estranho, que se emprestasse um destaque tão grande a um artigo de um jornal inglês, mesmo sendo o Times, com afirmações flagrantemente exageradas.

A existência de numerosas células do NSDAP, em centros urbanos um pouco  maiores e nas capitais dos estados do Centro Sul e até do Nordeste, não era segredo para ninguém. A natureza das suas atividades, também não. Seus endereços e a identidade dos seus dirigentes eram do conhecimento público. Sabia-se que a propaganda nacional-socialista e formação de núcleos para promovê-la fora da Alemanha era uma das atribuições da Organização para o Estrangeiro do Ministério do Exterior Alemão.

Parece claro que a matéria  faz parte de uma campanha, três anos antes de eclodir a Segunda Guerra Mundial, com a finalidade aliciar para uma aliança contra a Alemanha países da importância do Brasil. E não se conhece estratégia melhor e mais eficaz do que acirrar os sentimentos nacionalistas, numa época em que estes faziam parte da ordem do dia  nos países que se recuperavam de grandes crises, como a Alemanha, a Itália e outros, ou ensaiavam os primeiros passos para ascenderem ao status de nacionalidades modernas, como foi o caso do Brasil. Apontar, neste contexto, tendências contrárias à idéia nacionalista oficial produzia um efeito infalível. Quanto mais carregado o quadro e quanto mais exagerada a avaliação dos fatos, tanto melhor. É o que temos de forma exemplar no artigo do Times. 

A matéria começa afirmando que as numerosas colônias alemãs, mesmo antes da Grande Guerra (1ª Guerra Mundial) , merecem um apoio e um interesse todo especial por parte da Alemanha. Esse apoio, em termos de subsídios a escolas, professores, centros patrióticos, teria chegado ao extremo de afirmar que “ao espírito da grande maioria dos brasileiros que descendiam de colonos alemães, foi incutido que não ao Brasil, mas à Alemanha  é que deviam obrigações e tinham compromissos”. (Relatório I, 1942, p. 90)

Na afirmação do Times, há uma outra questão vital relacionada com todo o problema da nacionalização  dos alemães.  Não fica claro o que significa “compromisso” com a Alemanha. Se se  trata de compromisso político, o articulista dá uma demonstração de lamentável ignorância. Se entende compromisso cultural, a afirmação perde toda a sua importância. Se, finalmente, entende compromisso político e cultural simultaneamente, mistura duas coisas que foram exatamente o ponto de desencontro entre os nacionalizadores e os imigrantes alemães. 

Depois o autor da matéria do Times, faz outra afirmação no mínimo exagerada e, por isso mesmo, de difícil comprovação. Aliás em toda  matéria não se arrola  uma única prova documental. Tudo são afirmações que parecem ter a clara intenção de exagerar ao máximo, a importância da infiltração da propaganda  e dos resultados obtidos pelo nazismo entre as populações de origem alemã n Brasil. 

Afirma o artigo que as leis que obrigavam o ensino da língua vernácula “não foram tomadas em consideração pela maioria” (Relatório I, 1942, p. 90). Este fato pode ser facilmente desmentido pela documentação existente sobre a matéria.

Uma outra questão, também discutível, refere-se à espionagem recíproca que teria tomado conta das colônias alemãs e papel exercido pelos padres católicos e pelos pastores protestantes que administravam a cura de almas no meio colonial. Agentes nacionalizadores , inclusive muitos alemães que com eles colaboravam, infernizaram a vida dos colonos entre os anos de 1938 e 1945. Que tenha havido uma atitude, mais ainda, uma ação organizada de espionagem contra esses agentes contradiz, ao que tudo indica, a evidência dos fatos e a objetividade dos documentos disponíveis. 

O problema muda um pouco de feição, quando se trata de grupos de alemães concentrados nos centros urbanos. Repete-se aqui mais uma vez um aspecto da avaliação da questão da nacionalização. Classificam-se no mesmo nível e avaliam-se da mesma forma os alemães inseridos no contexto urbano e os alemães  espalhados pelas comunidade coloniais. Foram realidades étnico-culturais completamente distintas. Quanto à adesão ou rejeição da ideologia nacional-socialista, reagiam de maneira diferente. Fato aliás óbvio pelo nível de informações que chegava a uns e a outros e, pelo conhecimento que tinham, a respeito do complexo assunto da nacionalização. Para a imensa maioria dos alemães nas colônias, nazismo ou não nazismo, era um problema que, pelas razões já referidas em outra parte deste estudo,  nem se punha. 

Seguem depois  três informações no documento do Times que deixam o analista de hoje no mínimo perplexo. 

A primeira. “O regime hitlerista fortificou e ampliou a propaganda alemã no Brasil e o sentimento de simpatia à Alemanha desenvolveu-se como nunca durante o “Império”. (Relatório I, 1942, p. 90).

 Segunda. “É natural que tais medidas intensas tragam consigo a espionagem recíproca nas colônias, que fomentam antes a discórdia na população do que a harmonia”. (Relatório I, 1942), p. 90)

A terceira. “Estes atritos internos tiveram ainda mais tensão quando as relações entre as unidades religiosas na Alemanha e o governo hitlerista se ajudaram pois, no trabalho da conservação da raça alemã, dos teuto-brasileiros, sacerdotes católicos  e protestantes desempenharam sempre um papel importante”. (Relatório I, 1942, p. 90)

As três afirmações  que se acabam de citar sugerem algumas considerações. No que toca à primeira, é correta a firmação de que o regime hitlerista ampliou e intensificou a propaganda com a finalidade de aumentar sempre mais a simpatia para com a Alemanha. Uma crescente simpatia  em relação a tudo que era alemão se constituía, sem dúvida, no pressuposto para atrair os alemães e seus descendentes  a aderirem a tudo que vinha da Alemanha: a cultura, a língua, o sucesso econômico, os feitos militares e também a ideologia política implantada na época. A questão toda está no fato  de a “simpatia”, de que fala o texto, sugerir uma postura generalizada e favorável dos teuto-brasileiros para com o nacional-socialismo. O grande problema coloca-se novamente  no fato, intencional ou não, de vincular  como causa e efeito, o apreço à tradição e à língua e adesão ao nazismo. É claro que se constituía num passo importante, embora não obrigatório, mas não significava culminar obrigatoriamente numa confissão de um credo ideológico. Este passo, como provam as evidências, nunca foi dado pela absoluta maioria dos teuto-brasileiros.

Um segundo detalhe refere-se à admiração de que “durante o Império”, como nunca teria havido um sentimento de simpatia para com a Alemanha. Parece que há aqui uma lamentável confusão de períodos: o tempo do império no Brasil no século dezenove e o período hitlerista na década de 1930. As situações históricas foram tão diversas  que não há como estabelecer uma ponte entre os dois. No caso do império os interesses não ultrapassavam o nível das relações culturais e econômicas. No caso do “Terceiro Reich”, o objetivo último das relações consistia em conquistar a adesão política dos assim denominados “alemães no estrangeiro”.

A segunda afirmação fala de espionagem  recíproca nas colônias alemãs, devido às  intensas medidas de propaganda nazista. Os casos de espionagem  mútua, se de fato ocorreram e deram-se novamente em centros  urbanos. O recurso à espionagem na colônia restringiu-se a casos isolados.  Afirmações deste tipo só podem ter emanado da pena de um perfeito desconhecedor da realidade colonial alemã da época. O que houve e, com uma freqüência  considerável, foi uma verdadeira espionagem dos agentes do programa de nacionalização no meio colonial. Não eram alemães nazistas  que espionavam alemães na nazistas, mas agentes a serviço da nacionalização que espionavam os alemães nas colônias, à revelia dos direitos fundamentais da pessoa humana, como a inviolabilidade do lar, a  liberdade de ir e vir, a integridade física e moral.

A terceira afirmação de que os pastores protestantes e os padres católicos  desempenharam sempre um papel importante na conservação da raça alemã entre os teuto-brasileiros é mais uma dessas afirmações que requerem no mínimo uma distinção. No caso dos sacerdotes católicos o autor ignorou que a hierarquia católica no Rio Grande do Sul, embora presidida por um arcebispo alemão nato, há anos assumira uma posição declaradamente favorável à nacionalização dos alemães. Essa decisão já fora tomada no decorrer da Primeira Guerra Mundial. Continuou entre as duas guerras, por meio de atos da Cúria Metropolitana, publicados no órgão oficial da arquidiocese “Unitas”, em cartas pastorais, em ofícios e em outros atos  oficiais. Quando, enfim, a Campanha de Nacionalização se transformou num assunto oficial do Estado, tais atos tornaram-se rotineiros, de modo especial, a partir de 1938. Generalizar uma atitude de rebeldia da parte do clero católico em relação à autoridade eclesiástica, só pode ter sido fruto do desconhecimento das relações hierárquicas que norteavam o relacionamento entre as autoridades maiores e os escalões subalternos do clero. Se houve casos de desobediência formal, foram tão raros que não chegaram a  pesar no todo. As resistências passivas  de sacerdotes e religiosos em todo o caso não foram de molde a justificar a generalização feita apelo articulista do Times.

No que se refere aos pastores protestantes, ocorreram realmente casos de  adesão explícita  ao nacional-socialismo, de modo especial antes de 1938. Houve também, conforme consta,  casos de pregadores que se valeram da sua condição para propagar as idéias nazistas. Em todo o caso não ocorreu uma tomada de posição formal em defesa do movimento nacionalizador, pelo Sínodo Riograndense. Mesmo assim, as circulares expedidas pelo presidente do Sínodo, pastor Dohms, deixando clara a necessidade de pregar em alemão para que os fieis entendessem a palavra de Deus, sempre aconselhou o respeito e o acato  às autoridades do civis.  Quando se deu a proibição definitiva do uso da língua alemã em cerimônias e cultos públicos o pastor Dohms  não instigou à desobediência civil. Preferiu um prejuízo temporário da vida religiosa, suspendendo simplesmente os cultos. 

Os documentos em que o presidente do Sínodo Riograndense oficializou essas decisões foram inclusive  publicados nos relatórios da policia. Também nesse caso, uma generalização simplista, inspirou o autor do artigo do Times.

Aliás, o exagero, as generalizações, uma ausência lamentável de objetividade, em nada condizente com a importância do jornal em foco, ocupam as páginas finais do artigo. O lamentável foi que as autoridades  nacionalizadoras, sem um mínimo de precaução crítica, o tivessem utilizado como um argumento importante. Do lado do jornal, a intenção de tumultuar as relações entre as autoridades brasileiras  e os teuto-brasileiros parece evidente. Do lado dos agentes da nacionalização conclui-se por uma xenofobia que obstruía qualquer  possibilidade  de uma avaliação serena dos acontecimentos. Nada mais ilustrativo do que alguns parágrafos do documento.

Quase todas as escolas no sul do Brasil são mantidas pelo governo alemão, seguem este programa: calar sobre tudo o que é brasileiro, e espalhar o que é alemão.

Brasileiros e alemães natos que não simpatizaram com Hitler e seu regime, vão para a lista negra e sofrem todas as perseguições, tanto na vida social como comercial.

Verifica-se abertamente que a Alemanha se esforça  para ter no Sul do Brasil uma população de 100 milhões de habitantes e que os alemães ai residentes, são convocados a ajudar a Pátria no seu crescimento e desenvolvimento. 

Oferecem-se prêmios às famílias de prole numerosa. Mas como as crianças nascidas no Brasil são legítimos brasileiros, cuida-se que os “bebês” nazistas que ainda deverão ser súditos mais fervorosos de Hitler do que seus pais, nasçam no torrão do velho mundo e comecem a sua vida como cidadãos verdadeiros e legais da Alemanha.

Os navios ancorados em portos brasileiros tem instruções  de conduzir a bordo  as mães grávidas, alemãs e teuto-brasileiras, a fim de que seus filhos nasçam sob o pavilhão alemão. 

Os moços  de origem alemã são estimulados a preferir moças loiras e alemãs e o governo cuidadoso encarrega-se  de “exportar” moças arianas puras, como noivas, às quais fornecem um atestado oficial neste sentido.

Tudo o que entrar por terra e mar é sujeito a um controle rigoroso pelos agentes nazistas, mesmo a correspondência. Enquanto o movimento brasileiro fascista-nacionalista, o “integralismo” está proibido pelas autoridades de Santa Catarina o movimento nazista cresce sem freios. (Relatório I, 1942, p. 91-92)

A matéria do Times termina com uma referência ao “Deutsches Volksblatt” de Porto  Alegre. Como se sabe, o jornal em questão vinha, desde 1931, chamando a atenção  sobre os perigos que o nacional-socialismo oferecia, de modo especial para a religião. Foi boicotado pelos nazistas daqui e sua circulação proibida na Alemanha. 

O Relatório I transcreve depois, em tradução para o português, uma série de trabalhos apresentados por ocasião do terceiro congresso anual do Círculo Teuto-Brasileiro, com sede em Berlim. O evento se deu entre os dias 19 e 22 de março de 1937, na cidade de Benneckenstein. 

Trata-se de três conferências  que nos dão uma idéia muito clara sobre o ponto de vista teuto-brasileiro a respeito de termos como povo, nação, cidadania, nacionalidade e outros.

A primeira delas, sob o titulo “Problemas e Tarefas das Nova Geração Teuto-Brasileira”, foi proferida por Rudolf Batke.

A segunda a cargo de Friz Sudhaus, levou o titulo: “Os Trabalhos de Ensino Teuto-Brasileiro e  Questão da sua Existência”.

O dr. Karl Heinrich Hunsche proferiu  terceira palestra com o titulo: “Problemas Brasileiros sob o prisma Teuto-Brassileiro”.

Na época da elaboração do Relatório da Policia, devido à identidade dos seus autores, essas conferências foram entendidas como uma prova a mais de uma ameaça iminente do nazismo entre as populações alemãs no Sul do Brasil. Na verdade não passam de documentos que pretendem mostrar  o que significou para um alemão ou um teuto-brasileiro o conceito de cidadão, de etnia, de nacionalidade, de povo, de nação... e as relações necessárias ou não necessárias à vinculação causal ou meramente  casual, possível entre esses e outros conceitos. 

Objetivamente analisados esses documentos nada provam em termos de comprometimento político dos teuto-brasileiros para com o nazismo. É claro que, para alguém que não é capaz de distinguir compromissos políticos e ideológicos de compromissos  étnico-culturais, o raciocínio adotado  e os pontos de vista defendidos deveria causar no mínimo suspeitas. As três palestras referidas ocupam as páginas 97-152 do Relatório.

This entry was posted on segunda-feira, 18 de julho de 2022. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.