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REFLEXÕES SUGERIDAS PELA ENCÍCLICA LAUDATO SI - 92


Os limites da inovação biológica a partir da pesquisa.

As reflexões que precederam tiveram como uma das intensões básicas insistir no fato de que a humanidade não apenas vive e subsiste na natureza, mas  nela se encontra ontologicamente inserida como espécie biológica. Entretanto, ocupa uma posição  peculiar por ser dotada de inteligência que lhe garante  a capacidade observar observar a natureza que o cerca e perguntar como ela funciona,  como se originou, porque ela é assim, para onde caminha e qual o lugar e o papel que cabe ao homem  fazendo parte dela? A Encíclica resumiu em poucas linhas o poder e, ao mesmo tempo, o limite do seu exercício posto nas mãos do homem quando lhe foi confiado o “cultivo do jardim” no qual foi colocado pelo Criador. 

Na visão filosófica e teológica o ser humano e da criação que procurei propor, aparece claro que a pessoa humana, com a peculiaridade da sua razão e da sua sabedoria,  não é um fator externo que deva ser totalmente excluído. No entanto, embora o ser humano possa intervir no mundo vegetal e animal e fazer uso dele quando é necessário para a sua vida, o Catecismo ensina que as experimentações sobre os animais só são legítimas ‘desde que não ultrapassem os limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas’. (Laudato si, 130).

Nessa posição da Encíclica afirma-se, de um lado, a peculiaridade do homem dentre todas a demais criaturas pela “razão e sua sabedoria”, sua “inteligência reflexa” conceito recorrente  de que nos valemos nas reflexões acima quando está em jogo o relacionamento do homem com a natureza. Essa peculiaridade “não é um fator   externo”, que deva ser excluído, melhor, ignorado como limitador ao avanço científico e a aplicação dos seus resultados. É nessa perspectiva que se coloca a experimentação recorrendo a animais como “cobaias” para desenvolver novos medicamentos, transgênicos, modificações genéticas e todas demais experiências partindo dessa base. Não se trata somente de fazer novas descobertas e nova técnicas se não forem legitimadas pela ética que, como em qualquer intervenção na natureza, deve ser a baliza que orienta as ações  humanas. A Encíclica chama a atenção  que “o poder humano tem limites e é contrário à dignidade humana  fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente de sus vidas”. (Laudato si, 130). Como se pode perceber encontramo-nos frente a um desafio de dimensões incomuns. Em princípio toda e qualquer atividade científica tem como motivação conhecer  como funciona a natureza. Uma vez de posse desses conhecimentos permite-lhe desenvolver tecnologias para “cultivar o jardim” no qual passa a sua  existência. O “cultivar” pressupõe ações que, pela sua natureza são de alguma forma invasivas. Em outros termos, interferem na natureza, desde um nível quase imperceptível até o limite da quebra do equilíbrio de inúmeros ecossistemas, comprometendo o equilíbrio biológico do planeta como um todo. Mas, essa história já foi de alguma forma objeto das nossas reflexões mais acima.


Ciência e saúde
Chegou o momento de nos ocuparmos com as tecnologias desenvolvidas para o tratamento dos mais diversos males que afetam a saúde das pessoas, desenvolvendo medicamentos cada vez mais diversificados e mais eficientes. Nessa área os últimos 150 anos  foram decisivas para a melhora da saúde do planeta, dobrando em não poucos países a expetativa de vida. Tomando por base o recenseamento do Brasil de 1940, considerado o primeiro recenseamento confiável,  a expectativa de vida média o brasileiro ficava em 40,2 anos e no de 2000 subiu para 70,4 e em 2015 para 75,5. A partir de 1850, ano de referência desses dados a pesquisa e a tecnologia correspondente deu um salto, uma revolução para melhor,  de dimensões difíceis de avaliar.

O primeiro grande  nome de cientista nessa verdadeira guerra contra os males responsáveis pela morte de milhões de pessoas  e a consequente baixa média da expectativa de vida, foi Louis Pasteur (1822-1895). Pasteur já era um nome de destaque na pesquisa científica antes de centrar suas atenção na área médica em 1865. Em 1861 recebera o prêmio da Academia de Ciências por ter desenvolvido técnicas para controlar o desenvolvimento de micro-organismos em alimentos e bebidas, método hoje conhecido como Pasteurização. Depois dessa memorável conquista da ciência e criados os meios de a por em prática, Pasteur foi requisitado para descobrir o motivo da mortandade que acometeu as larvas do bicho da seda, causando prejuízos enormes a produção de seda na França. Em 1850 haviam sido produzidas 20000 toneladas  na França. O volume foi caindo até 4000 toneladas em 1865. Depois de examinar os sintomas pôs-se a procurar a causa da epidemia. Chegou à conclusão que os responsáveis eram micro-organismos presentes na poeira do ar dos recintos em que as larvas eram criadas, contaminando as folhas da amoreira de que se alimentavam, levando à morte aquelas que apresentavam predisposição genética para desenvolver a “peprina” nome dado ao desenvolvimento de pontos negros nas lavras, inclusive em sus órgãos internos. Pasteur ensinou os produtores de seda como identificar os ovos defeituosos e eliminá-los e evitar que as folhas da amoreira fossem contaminadas. A partir de de todas essas pesquisas Pasteur  chegou à conclusão que as doenças eram causadas por micróbios específicos para cada uma.  Comprovou que os estafilococos eram os responsáveis pela desenvolvimento dos furúnculos, osteomielite  e outras doenças.

Com esses dados na mão Pasteur convenceu-se de que a causa  de muitas doenças era externa ao organismo. Com isso, estava criada a possibilidade de desenvolver técnicas de esterilização e assepsia diminuindo drasticamente  as infecções pós cirúrgicas, a obstetrícia, ferimentos, injeções, e qualquer intervenção invasiva no organismo. Aos méritos enumerados creditados a Pasteur soma-se mais um tão ou mais benéfico do que os outros. Falamos da descoberta do princípio de como se desenvolve e como funciona a vacina. Não é aqui o lugar para entrar nas particularidades científicas e as técnicas da vacina. O fato é que se trata de uma descoberta que abriu um leque sem limites posto à disposição da saúde da humanidade como meio eficaz para se prevenir contra todo tipo de enfermidades que têm como causa agentes externos como os micróbios. A técnica manual e em pequena quantidade do começo desenvolveu-se numa velocidade e diversificação espantosa. Hoje a descoberta do cientista francês anima centenas de laboratórios especializados para atender a demanda de sempre novas modalidades de agentes microbianos externos. Inclusive bioreatores são utilizados para a demanda em plena expansão.

Louis Pasteur é uma dessas personalidades emblemáticas de cientista que revolucionou com suas descobertas o campo da saúde, lançou os fundamentos que moldaram o panorama no  qual se lida com a ela nas muitas modalidades em que é praticada. Sobre este princípio  o médico pesquisador Albert Sabin (1906-1993) desenvolveu a famosa vacina das “duas gotinhas” contra a poliomielite ou paralisia infantil causada por um vírus que se instala nos intestinos e ataca o sistema nervoso, levando à paralisia parcial ou total. Temos aqui mais um exemplo da importância das descobertas de Louis Pasteur e o desenvolvimento de procedimentos para melhorar a saúde  pública. Milhões de crianças ficaram livres dos efeitos degenerativos da paralisia infantil desde a década de 1940, quando essa vacina se popularizou e se tornou um prática rotineira  imunizando as crianças por meio de campanhas  de vacinação. No mesmo patamar de importância de Pasteur e Sabin, Alexander Fleming contribuiu no combate a muitas formas de doenças até então incuráveis. Por um desses acasos que foram revolucionários em outras descobertas, em 1928, ao estudar culturas Staphylococcus aureus Fleming constatou, numa amostra que esquecera sobre a mesa durante suas férias, o desenvolvimento do um fungo do gênero Penicillium que apresentava  espaços transparentes. Fleming concluiu que que os fungos liberavam algum tipo de substância  que matava as bactérias. Depois de comprovado que afetava as células de animais, foi alguns anos mais tarde purificado e concentrado em laboratório por dois outros cientistas: Howard Florey e Ernst Chain. Ficou mundialmente famosa com o nome de “Penicilina” e usada em grande escala durante a Segunda Guerra Mundial para tratar ferimentos infectados por bactérias. Na década de 1940, os três cientistas  foram contemplados com o prêmio Nobel de medicina e o antibiótico passou a ser  posto à disposição da população civil.

As conquistas de Pasteur, Sabin e Fleming  muniram a medicina com poderosos e eficientes armas para combater doenças que causavam constante preocupação e não havia medicamentos eficazes para combate-las. Entre muitas vale destacar a pneumonia, sífilis, difteria, meningite, bronquite, e outras infecções das mais diversas modalidades. A Revolução dos três na área da medicina em nada ficam a dever a Galileu, Copérnico e Keppler na astronomia, Newton na física e matemática, Darwin na evolução,  Max Plank na Física, Einstein na Física, Mendel na genética, Marconi na telegrafia sem fio, Francis Collins com o mapeamento do genoma humano, e não poucos outros.

Não se podem esquecer os “senões” inevitavelmente relacionados como os aspectos questionáveis que acompanham as descobertas científicas de dimensão planetária sobre o controle dos agentes causadores de não poucas enfermidades graves. Mas, esse é o lado da medalha que merece ser saudado com entusiasmo. Há, porém, o outro lado que de maneira alguma pode ser ignorado ou relativizado. Essa outra face do progresso da ciência e tecnologia oferece uma questão que de forma alguma pode ser desprezada. Referimo-nos aos experimentos que se valem de animais como “cobaias” para desenvolver e testar os novos medicamentos para serem, uma vez confirmada sua eficácia e inocuidade, recomendadas pela autoridades sanitárias e postos à disposição do público em farmácias, drogarias, postos de saúde, etc. A Encíclica chama a atenção que o recurso a animais e plantas não pode ser indiscriminada e tem seus limites. “o poder humano tem limites e que é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente  os animais e dispor indiscriminadamente  das suas vidas. Todo  o uso e experimentação exige um respeito religioso pela integridade da criação”. (Laudadto si, 130). A essa consideração a Encíclica acrescenta as ponderações de João Paulo II que resume o tamanho e o número de implicações sobre outros campos induzidas pela manipulação da natureza, de modo especial a genética.

Quero recolher aqui a posição equilibrada de São João Paulo II, pondo em destaque os benefícios dos progressos científicos e tecnológicos, que ‘manifestam  quanto é nobre a vocação do homem para participar de modo responsável na ação criadora de Deus’, mas ao mesmo tempo recordava que ‘que toda e qualquer intervenção numa área determinada do ecossistema não pode prescindir  da consideração das suas consequências noutras áreas’. Afirmava que a Igreja aprecia a contribuição ‘do estudo e das aplicações da biologia molecular, completada por outras disciplinas como a genética e a sua aplicação  tecnológica na agricultura e na indústria’, embora disse também que isso não deve levar  uma ‘indiscriminada manipulação genética’ que ignore os efeitos negativos destas intervenções. Não é possível frenar a criatividade humana. Se não se pode proibir a uma artista que exprima a sua capacidade criativa, também não se pode proibir a um artista que exprima sua capacidade criativa, também não se pode obstaculizar quem possui dons especiais para progresso científico e tecnológico, cuja capacidade foram dadas por Deus para o serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de considerar, os efeitos, o contexto e os limites éticos de tal atividade humana que é uma forma de poder de grandes riscos. (Laudato si, 131).

Mais acima já chamamos a atenção que todo o avanço tecnológico significa uma contribuição para aperfeiçoar as ferramentas que impulsionam o  progresso. Mas, ao mesmo tempo, se a produção e comercialização dessas “ferramentas” forem controladas e monopolizadas por empresas privadas ou governos, transformam-se em instrumentos de “poder”. Os preços são  estabelecidos por eles e, com isso, dificultam que uma grande porcentagem da população se beneficie dos resultados. Laboratórios de porte internacional detêm as patentes exclusivas dos medicamentos, da manipulação genética responsáveis pela modificação de organismos. A tudo isso soma-se à produção de transgênicos e o complexo de pesticidas, herbicidas, adubos químicos e por aí vai. Os efeitos em termos ecológicos já foram objeto de reflexões mais acima. A tudo isso acresce outro “senão” de difícil dimensionamento. Com o poder da tecnologia sob controle, dificultam ou simplesmente impedem o registro de novos medicamentos, com destaque para os fitoterápicos cujo potencial de eficácia já foi comprovado na prática em não poucas modalidades de enfermidades das quais as drogas químicas não dão conta. Fato similar acontece com o combate biológico das “pragas” que reduzem a produtividade das lavouras.

Com esse panorama como fundo somos levados a insistir que a pesquisa científica faz parte indispensável  da missão do homem de “cultivar” a “sua casa”, a “sua mãe e pátria”, que o sustenta e abriga para cumprir a sua jornada existencial. No discurso proferido por João Paulo II na sessão por ocasião da solene assembleia da Pontifícia Academia de Ciências em homenagem a Einstein por ocasião do centenário do seu nascimento, o pontífice confirmou que esse também é o entendimento da Igreja.  “A Sé Apostólica quer também prestar a Albert Einstein a homenagem que lhe é devida pela contribuição eminente que trouxe ao progresso da ciência, quer dizer, ao conhecimento da verdade, presente no mistério do universo”. (João Paulo II, 10 de novembro de 1979). Continua depois relembrando a missão de Pio XI dada aos sábios integrantes da Pontifícia Academia de Ciências, recriada por ele: a fazerem “progredir, cada vez mais nobre e intensamente, as ciências, sem lhes pedir a mais; isto porque, neste excelente  propósito e neste labor, consiste a missão de servir a verdade, da qual nós  os encarregamos”. (Motu próprio,  28 de outubro de 1936). Em seguida o pontífice resumiu o significado central do conceito “fazer ciência”.

A investigação da verdade é a tarefa fundamental da ciência. O investigador, que se move nesta primeira vertente da ciência, sente toda a fascinação das palavras de Santo Agostinho: “Intellectum valde ama” – “Ama muito  a inteligência” e a função que lhe é própria, de conhecer a verdade. A ciência pura é um bem, digno de ser muito amado,  porque ela é conhecimento e portanto perfeição do homem na sua inteligência. Antes mesmo das suas aplicações técnicas, deve ela ser honrada por si mesma, como parte integrante da cultura. A ciência fundamental é bem universal, que todos os povos devem poder cultivar em plena liberdade de qualquer forma de servidão internacional ou de colonialismo intelectual.
A investigação fundamental deve ser livre diante dos poderes político e econômico, que hão de colaborar para o desenvolvimento dela, sem a deter na sua criatividade nem a fazer servir aos próprios interesses. Como toda outra verdade, a verdade científica não tem, como efeito, de dar contas senão a si mesma e à Verdade suprema que é Deus, criador do homem  e de todas as coisas”.
Na sua vertente, volta-se a ciência para as aplicações práticas, que encontram o pleno desenvolvimento nas diversas tecnologias. Na fase das suas realizações concretas a ciência é necessária à humanidade para satisfazer as justas exigências da vida e vencer  os diferentes males  que ameaçam. Não há dúvida que a ciência aplicada prestou e  prestará aos homens serviços imensos, contato que seja, ao menos um tanto, inspirada pelo amor, regulada pela sabedoria e acompanhada pela coragem que a defende   contra ingerência indevida de todos os poderes tirânicos. A ciência aplicada deve aliar-se à consciência para que, no trinômio ciência-tecnologia-consciência, seja servida  a causa do verdadeiro bem do homem. (João Paulo II, discurso para os integrantes da PAC, em assembleia comemorativa do centenário de nascimento de Albert Einstein, 10 de novembro de 1979))

Essa passagem do discurso de João Paulo II dirigida aos membros da Pontifícia Academia de Ciências, resume o tripé sobre o qual se fundamenta o conceito de “fazer ciência”. Em primeiro lugar, o “fazer ciência”, a investigação, a curiosidade de conhecer a complexidade do universo e da natureza, faz parte da própria condição humana. Dotado de intelecto, ou se preferirmos, de inteligência reflexa, o homem não se contenta apenas em viver e sobreviver, como também procurar entender “como” o mundo funciona  e “porque” afinal é assim. Em outras palavras, pela investigação, pelo fazer ciência, cultiva-se a inteligência em busca da Verdade, independentemente da aplicação por meio de tecnologias desenvolvidas a partir do potencial prático que oferece. Entendida assim a ciência como resultado da atividade do intelecto é um bem em si. Ela se basta si mesma independentemente de alguma aplicação prática. Neste nível ela se resume numa demonstração do que é capaz a mente humana quando toma consciência da magnificência, da beleza, do belo e do sublime revelado em  milhões de formas e cores,  nos matizes mais inusitados do universo e da natureza.  Desperta nela então a curiosidade, a ânsia de procurar entender a multiplicidade, a complexidade e a urdidura que faz com que a natureza mineral, os micro organismos, a flora, a fauna e nela espécie humana se relacionam formando uma grande síntese. A Ciência assim entendida constitui-se num dos elementos de todas as culturas. Acontece que as muitas culturas e subculturas moldaram os seus perfis em condições físico geográficas as mais variadas, a prática da investigação científica percorre caminhos diversos e assume formas próprias. Mas todas elas partem do mesmo fundamento enunciado na citação acima por Sto. Agostinho: “Intellectum valde ama – Ama muito a inteligência” e a função que lhe é própria e converge para o objetivo comum: a busca da Verdade.