A
Encíclica começa a reflexão sobre a pesquisa científica e o caminho que abre
para intervir na natureza, tanto vegetal, quanto animal e humana, insistindo no
fato de que o ser humano dotado de inteligência reflexa não se situa fora da
natureza mas, acha-se ontologicamente inserido nela. Munido da “razão”, fato
que o distingue de todos os outros seres vivos, está em condições de interferir nos processos naturais
de posse dos conhecimentos que a pesquisa científica multiplica sem parar,
contanto que redundem em benefício da qualidade de vida individual e coletiva.
“As experimentações em animais só são legítimas desde que não ultrapassem os
limites do razoável e contribuam para curar ou poupar vidas humanas”. (Laudato
si, 130). Em termos essa advertência vale também para o transplante de órgãos
nos próprios seres humanos. Em ambos os casos, principalmente no segundo, os
limites das pesquisas e os procedimentos que possibilitam, devem se orientar
pelo princípio ético do “duplo efeito”. Em outras palavras. Os eventuais
danos à natureza em geral e ao homem em
especial justificam-se quando resultam num efeito qualitativo superior ao dano causado.
Por exemplo. Ninguém duvida que um rim sadio doado por alguém não seja uma
mutilação do doador mas, em compensação, vai resultar num bem maior que é a
salvação da vida do receptor.
Não é possível frear a
criatividade humana. Se não se pode proibir a um artista que exprima a sua
capacidade artística, também não se pode obstaculizar quem possui dons
especiais para o progresso científico e tecnológico, cujas capacidades foram dadas por Deus para serviço dos outros. Ao mesmo tempo, não se
pode deixar de considerar os objetivos, os efeitos, o contexto e os limites
éticos de tal atividade que é uma forma de poder com grandes riscos. (Laudato
si, 131)
Mais
acima já refletimos sobre as duas faces do uso da tecnologia. Segundo Teilhard
de Chardin, também já referido, a tecnologia e seu constante aprimoramento e
diversificação põe na mão do homem as ferramentas que permitem que o progresso mantenha seu
ritmo. De outra parte, quando desviada da sua vocação de promover o bem comum e
melhorar a qualidade de vida do maior número possível de seres humanos e
os resultados concentrados nas mãos de
poucos, de ferramenta do progresso a tecnologia transforma-se em instrumento de
poder. Voltamos a insistir que a Ciência e a Tecnologia implicam no postulado
ético de explorar os potenciais da natureza e pô-los à disposição do homem
permitindo assim que atenda às suas aspirações tanto materiais quanto
espirituais. No momento, porém, em que a tecnologia e seus resultados se
concentrarem nas mãos de poucos, de ferramenta de progresso degenera em
instrumento de poder.
Neste quadro, deveria
situar-se toda e qualquer reflexão acerca da intervenção sobre o mundo vegetal
e animal que implique hoje mutações genéticas geradas pela biotecnologia, a fim
de aproveitar as possibilidades presentes na realidade natural. ( ... ) Em todo
o caso, é legítima uma intervenção que atue sobre a natureza para ajudar a
desenvolver-se na sua própria linha, a da criação querida por Deus. (Laudato
si, 132)
Postas
essas premissas algumas implicações nesse processo merecem ser destacadas
quando falamos de tecnologias de manipulação da natureza. Uma delas aponta para
o fato de que, por ex., as mutações genéticas fazem parte como um dos
mecanismos fundamentais responsáveis pela origem e diversificação das milhões,
talvez bilhões ou trilhões de macro, micro e nano espécies vivas que povoam a
biosfera. Há aquelas que levam à extinção de espécies, outras dão origem a
novas espécies, outras ainda modificam espécies tornando-as mais ou menos
viáveis no decorrer das transformações
físico geográficas ocorridas na sucessão
dos diversos períodos da história da terra. Acontece que quando as mutações
ocorrem ao natural levam períodos longos para que seus efeitos somados
configurem uma nova realidade intra ou
interespecífica.
As
tecnologias de manipulação genética permitem que se desenvolvam, plantas ou
animais modificados e adaptados para atender as mais diversas finalidades, num
espaço de tempo muito mais reduzido do que acontece na natureza. De outra parte
a prática da seleção genética é tão antiga quanto a história da domesticação
animal e do cultivo de cereais e outras espécies de plantas úteis. As técnicas
utilizadas não se valiam de modificações genéticas induzidas pelas manipulações
diretas nos genes pois, estas tornaram-se possíveis somente após a descoberta
das leis fundamentais da hereditariedade por Mendel. Mas, o grande salto em
direção à possibilidade de manipulação por meio de técnicas cientificamente
seguras e controladas, veio a partir do final da Segunda Guerra Mundial. A
composição química do DNA e sua estrutura e funcionamento foram
identificadas e esclarecidas, no
decorrer da segunda metade do século XX, sobressaindo, entre muitos outros
geneticistas Theodosius Dobzhansky como o nome mais destacado. Com esses
conhecimentos em mão foi possível, a partir do final do século passado,
desenhar em tese, os mapas genéticos individualizados de quantas espécies for
interessante. O mapa da espécie humana foi concluído e anunciado ao mundo pelo
presidente Clinton no primeiro semestre do terceiro milênio. O médico
geneticista Francis Collins coordenador responsável peto projeto, abriu a
introdução da sua obra: “A Linguagem de Deus” com essa reflexão:
Num dia quente de verão do
primeiro semestre do novo milênio, a humanidade atravessou uma ponte rumo a uma
nova era de tremenda importância. Ao mundo inteiro foi transmitido um pronunciamento,
com destaque em praticamente todos os jornais mais importantes, apregoando que
o primeiro rascunho do genoma humano, nosso manual de instruções havia sido
concluído.
O genoma humano é formado
por todo o DNA de nossa espécie; é o código da hereditariedade da vida. O texto
recém-revelado apresentava 3 bilhões de letras, escrito num código estranho e
enigmático composto de quatro letras. A complexidade de informações contidas em
cada célula do corpo humano é tamanha e tão impressionante que ler uma letra por segundo desse código
levaria 31 anos, dia e noite, ininterruptamente. Se imprimíssemos essas letras
num tamanho de fonte regular, em etiquetas normais, se as uníssemos, teríamos
como resultado uma torre do tamanho aproximado de um prédio de 53 andares. Pela
primeira vez naquela manhã de verão, aquele enredo fabuloso, que continha todas
as instruções para construir um ser humano, encontrava-se disponível no mundo. (Collins,
207, p. 9-10)
Para
Collins, médico geneticista, o mapeamento do código genético do homem,
significou muito mais do que um conquista científica. Abriu o caminho para identificar
e localizar naquele “mapa enigmático” os genes responsáveis por males
diretamente hereditários e os que predispõem os portadores a contrair com maior
probabilidade alguma anomalia hereditária. Com esses dados na mão, tornou-se
possível desenvolver tecnologias
terapêuticas mais adequadas para situações concretas. A partir daí tomou
impulso a “Biogenética”, subcampo da Biologia que tem por objeto específico o
conhecimento até as últimas minúcias da natureza biológica de todos os seres
vivos e os mecanismos tanto da perpetuação das espécies, quanto da sua
diversificação, inclusive a formação de novas espécies. A partir dessa base
tornou-se possível a “Engenharia
Genética” que permite a manipulação do genoma valendo-se de nanotecnologias de
alta complexidade e finíssima resolução. Assim, abrem-se as portas para
entender “aquele enredo fabuloso” por Collins referido acima, que contém todas
instruções para construir a vida em todas as suas modalidades e níveis taxonômicos.
Os
métodos da engenharia genética e suas respectivas ferramentas colocam nas mãos
do homem, nada mais nada menos, do que o poder de manipular a vida com destaque
para a humana. De todos os campos da tecnologia este contém um potencial ainda
não dimensionável de benefícios quando bem intencionado e bem conduzido, como
também devastador quando mal direcionado. De um lado põe à disposição dos
cientistas e tecnólogos as ferramentas para melhorar as condições de vida,
principalmente da humanidade, e, do outro um instrumento de poder ilimitado
àqueles que se apoderam e concentram em suas mãos o controle das biotecnologias
e seus frutos e benefícios.
Nessa perspectiva o aprofundamento do
conhecimento e o aperfeiçoamento das técnicas de manipulação abre o caminho
para intervir na natureza biológica do
homem até um desfecho, de momento pelo menos, difícil de prever. Certamente é
prometedor a melhora das perspectivas de vida de pessoas portadores de genes
que direta ou indiretamente afetam o desenvolvimento normal do corpo ou de
partes dele, ou então predispõem a contrair mais facilmente doenças como
diabete, pressão alta, determinadas modalidades de câncer e outras a serem
identificadas. A constatação de Francis
Collins, acima mencionada, “o genoma humano
é formado por todo o DNA de nossa
espécie como vem a ser o código hereditário da vida. O texto recém-revelado
apresenta 3 bilhões de letras, escrito
num código estranho e enigmático de quatro letras” (Collins, 2007, p. 10). A
combinação e recombinação dessas 3 bilhões de letras agrupadas de quatro em
quatro, permite estatisticamente calcular um número astronômico de modalidades de combinações.
Cabe aos estatísticos enfrentar o desafio desse cálculo. Para a reflexão que
estamos fazendo aqui interessam os reflexos visíveis e invisíveis sobre o
organismo humano, no momento em que por mecanismos naturais ou por meio da tecnologia se mexe
nas letras desse “alfabeto”, aparentemente simples, porém, finamente calibrado
e de incalculável resolução. O lugar ocupado por cada “letra” ou gene agrupados
de quatro em quatro, determina, por assim dizer a “palavra”, “o conceito”, o
código cujo sentido repercute de alguma forma no organismo. Se as “letras”
ocuparem o seu devido lugar na formação da “palavra” o organismo se
desenvolverá normalmente obedecendo ao comando do código que ela representa. No
momento em que, por uma razão qualquer, ocorrer uma troca de posição de local no
código, ou a ausência de uma das quatro “letras”, ou ainda o conjunto, essa
“mutação” se manifestará na forma de uma anomalia hereditária e/ou num
potencial de maior viabilidade. Uma vez acontecida a mutação ela se perpetua e
é transmitida para as gerações descendentes da pessoa que a sofreu. Isso
acontece com as mutações positivas e negativas. À base dessas descobertas desenvolveu-se toda uma linha de
tecnológicas de alta precisão para localizá-las e identificar as consequências e os possíveis
tratamentos dos portadores ou, na medida do possível, evitar que se transmitam
aos seus descendentes.