Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 23 -

Continuando em suas reflexões o Papa alerta para uma outra dimensão na invasão dos ecossistemas pelo homem. além de as políticas e as ações se destinarem à preservação de determinadas espécies. Há pouco chamamos a atenção para o risco que representa a agressão aos solos como ecossistemas. A tudo isso vêm somar-se as grandes obras de engenharia necessárias para fazer andar a nossa civilização. Escolhemos alguns exemplos mais emblemáticos. Num país como o nosso, a China, Rússia, Estados Unidos, Canadá e outros, os grandes rios são um recurso natural de valor inestimável. Além das muitas riquezas oferecidas pelos ecossistemas formados em suas bacias naturais, a energia disponível no  seu potencial hidráulico é de inegável serventia. Na medida que aumenta o clamor pela substituição da queima de combustíveis fósseis e uso da energia nuclear, cresce o interesse por fontes de energia renovável e limpa. Em países donos de rios de grande porte o recurso ao potencial hidroelétrico não passa de uma alternativa óbvia. Os investimentos para a implantação de uma hidroelétrica e transmissão para os centros de consumo a centenas e até milhares de quilômetros de distância, costumam ser muito altos. Mas os investimentos básicos  e o custo da posterior manutenção e linhas de transmissão compensam amplamente o custo e benefício. Em termos ecológicos e danos aos ecossistemas  exigem precauções. A construção das barragens, gigantescas obras de engenharia são, pela sua própria natureza, profundamente invasoras  e agressivas. Os reservatórios acumulam bilhões de metros cúbicos de água. Monstruosos lagos, quase mares artificiais, afogam parte importante do ecossistema nas proximidades das margens do rio e seus afluentes. No Brasil, esses gigantes, como  Belo Monte, Tucurui e outras mais estão sendo implantadas em plena floresta amazônica. Terminam com a flora e a fauna, na medida em que o nível dos seus reservatórios sobe. As condições exigidas para a licença ambiental, nunca chegam a impedir a construção dessas obras pois fazem parte da política energética oficial e o programa para implementá-lo. Ela termina falando mais alto do que os ecossistemas por sua urgência no fornecimento de energia para o progresso e o desenvolvimento. Nessas obras de infraestrutura são louváveis os esforços no salvamento dos animais da floresta e sua transferência  para fora do alcance do nível das represas. O que não tem como salvar é a floresta com sua microfauna e microflora. Há casos em que monumentos da natureza, inclusive com forte apelo histórico são sacrificados. No fundo do lago de Itaipu estão sepultadas as Sete Quedas, referência paisagística e histórica daquela região. Aquele local foi palco de um dos episódios mais escabrosos da conquista do território nacional  pelos bandeirantes, um verdadeiro genocídio praticado contra os índios do Guaíra. Em nome do progresso o monumento natural, as Sete Quedas,  com seu significado histórico, foi condenado ao esquecimento no fundo do lago. Não se pode ignorar que na atual conjuntura energética essas obras são um mal necessário. De qualquer forma são brechas e feridas abertas na paisagem natural.

As  estradas estão entre as causas que interferem significativamente nos ecossistemas e como tal afetam a biodiversidade. Pela própria natureza menos espetaculares do que as hidroelétricas gigantes, as estradas estendem seus tentáculos até o recesso dos vales mais retirados. Escalam montanhas e ramificam-se sobre os planaltos. Estradas largas, de preferência duplas são vitais para fazer funcionar o transporte de mercadorias e pessoas. Bem planejadas e adequadamente construídas e conservadas, vem a ser indispensáveis para o nosso modelo de civilização. Seu traçado consegue de alguma forma encaixar-se no ambiente de maneira que a agressão física e estética é parcialmente preservada. Por isso creio que se possa afirmar que as estradas agridem o meio ambiente com seus ecossistemas de forma aceitável. Não se pode, entretanto, ignorar os poluentes liberados pela combustão dos motores além do ruído e da trepidação pelo trânsito de veículos de carga. Parece que esse último seja o mais perturbador para os ecossistemas que acompanham as margens da estrada. Aves, mamíferos, répteis, batráquios apreciam um ambiente em que ruídos, sons, cantos, gritos, o farfalhar do vento nas folhas, as chuva, as cachoeiras fazem parte do próprio habitat. O ronco do motor de uma carreta faz-se ouvir a centenas de metros longe da estrada. Os gases alteram a qualidade da atmosfera, espantam animais e aves e afastam os insetos, prejudicando a polinização. Somando o que de negativo e positivo  há no caso das estradas, e tirando os noves fora, parece que sobra um bom saldo para o lado do benefício.

O reflorestamento em grandes áreas com uma só espécie, vem a ser outro  ponto de interrogação complicado para responder. Para começo de conversa, não formam ecossistemas de acordo com o conceito que nos vem orientando. Se os considerássemos como tais não passariam de caricaturas. Um reflorestamento de pinus não passa muito de um deserto verde. Alguns roedores e um número irrisório de aves frequentam esse ambiente. A camada de agulhas que forma um tapete no chão, não permite o desenvolvimento de uma vegetação secundária digna desse nome. Uma floresta de eucaliptos sofre de limitações semelhantes. O reflorestamento com acácia negra também permite só uma vegetação secundária limitada. Leva, entretanto, a vantagem sobre o pinus por fixar nitrogênio no solo  e assim favorecer o ecossistema subterrâneo formado pelos micro organismos. O reflorestamento com eucaliptos apresenta os mesmos inconvenientes dos dois anteriores. Leva uma certa vantagem por permitir o desenvolvimento de uma respeitável vegetação secundária. As folhas descartadas somadas às da vegetação secundária decompõem-se formando uma camada protetora do chão que, processada pelos micro organismos, minhocas e insetos acumula uma camada de húmus e com isso não esgota o solo. Resumindo. As três modalidades de reflorestamento e outras mais possíveis, na condição de monoculturas, não passam de ecossistemas pobres, se é que se pode falar nesses termos. Acontece, porém, que na conjuntura ambiental do momento são um mal necessário. O pinus e o eucalipto são fontes cada vez mais indispensáveis de madeira para atender a demanda do mercado. Evitam assim que se acelere o avanço sobre as madeiras nobres das florestas nativas, depauperando cada vez mais seus ecossistemas. A acácia negra e o eucalipto suprem com lenha as demandas das olarias, cerâmicas e fornos de carvão vegetal, aquecimento de aviários e de modo especial da celulose. Neste sentido, pensando os prós e os contras, o custo benefício por assim se dizer empata. Mantendo em limites convenientes esses ecossistemas artificias paupérrimos em biodiversidade, evitam de alguma forma o avanço da agressão aos ecossistemas naturais que, bem ou mal, ainda são respeitáveis com sua biodiversidade preservada. Sobre essa questão, o Papa alerta.

Habitualmente também não se faz objeto de adequada análise a substituição da flora silvestre por áreas florestais, com árvores, que geralmente são monoculturas. É que pode afetar gravemente uma biodiversidade que não é albergada pelas novas espécies que se implantam. Também as zonas úmidas que são transformadas em terras agrícolas, perdem a enorme biodiversidade que abrigavam. É preocupante nalgumas áreas costeiras, o desaparecimento dos ecossistemas constituídos pelos manguezais. (Laudato si, 39)

Falando em substituição de ecossistemas naturais por ecossistemas humanizados, além do reflorestamento convém lembrar outras modalidades de humanização. O aproveitamento das planícies fluviais para fins agrícolas é a primeira. Historicamente falando a agricultura teve o seu ponto de irradiação a partir de núcleos de agricultores próximos a rios. O Nilo no Egito, o Eufrates e o Tigre na Mesopotâmia, os grandes rios da China, são os mais conhecidos. Foi nas várzeas desses rios que o homem cometeu conforme Edward Wilson “a primeira traição à natureza” ou, segundo Darcy Ribeiro, desencadeou a “Revolução dos Alimentos”. Dependendo da perspectiva que se escolhe, ambos tem a sua razão. Mas já nos ocupamos desse assunto mais acima. Foi nesses ecossistemas  nas várzeas dos rios e seus afluentes que teve início a substituição dos ecossistemas naturais por humanizados. Em outras palavras e, dando razão a Edward Wilson, começou a invasão, agressão e depauperamento  do ambiente natural. E, dando razão a Darcy Ribeiro abriram-se perspectivas ilimitadas para alimentar a humanidade e  assim multiplicar-se e expandir-se, dominar a terra e ter acesso aos seus recursos. Foi também nesse  meio ambiente que as aldeias dos agricultores evoluíram para centros urbanos e, em termos da época, em metrópoles como Ur e Uruc na Mesopotâmia e a capital das dinastias do Egito. O aproveitamento das planícies fluviais, com seus solos de alta fertilidade, renovada pelas cheias periódicas dos rios, permitiu que a agricultura prosperasse e se expandisse em  todas as direções no Oriente Médio, no Egito, em volta do Mediterrâneo e no Oriente Remoto. Da  riqueza em biodiversidade original pouco se salvou.

Na mesma proporção em que os agricultores foram reduzindo o número de espécies cultivadas, o número e a diversidade original foi diminuindo. O auge desse processo pode ser observado hoje nos campos até perder de vista de monoculturas de soja, milho, trigo e outras. Torna-se cada vez mais urgente encontrar formas de minimizar o impacto negativo sobre a biodiversidade. Frente a tudo isso é de importância sem igual a preservação da biodiversidade em alguns ecossistemas ainda pouco invadidos. Um dos maiores e mais ricos vem a ser o  Pantanal. Pela área que cobre e pela biodiversidade que abriga, dificilmente existe outro igual formado por um complexo fluvial. Sua importância ultrapassa em muito suas fronteiras geográficas. Funciona como reserva de umidade vital para o centro sul do Brasil, norte da Argentina e Uruguai. Influi na circulação dos ventos. Abriga uma fauna e flora sem igual. Mexer no Pantanal com ações que alteram sua estrutura, do tipo drenagens, diques, barragens, além de repercutir desastrosamente sobre sua biodiversidade, far-se-á sentir a  milhares de  quilômetros de distância.

Em segundo lugar, são os ecossistemas marinhos. Pela sua natureza sempre atraíram o homem, de um lado pela fartura de alimentos e do outro como vias naturais de circulação. A partir deles partia-se terra adentro. Com o aperfeiçoamento das tecnologias de navegação as baías e enseadas recebiam e abrigavam os navegantes e suas embarcações. Nelas consolidaram-se  polos de comércio que, por sua vez, exigiram uma infraestrutura adequada e, consequentemente uma população fixa em permanente crescimento. Na esteira da navegação marítima, regional e local, centenas de cidades portuárias foram consolidadas pelo mundo afora. Todo o tipo de rejeitos agressivos e invasivos procedentes das cidades e  descartados pelos navios transformaram as áreas portuárias em cemitérios da biodiversidade. Um dos exemplos mais gritantes de degradação e consequente extermínio da fauna e flora costeira é a baía da Guanabara. Em escala maior ou menor as cidades portuárias espalhadas pelo cinco continentes, tiveram seus ecossistemas seriamente comprometidos. Edward Wilson estudou a fundo essa questão no parque nacional das ilhas do Porto de Boston. Para ele essas áreas são classificadas como micro áreas naturais. O Porto de Boston é exemplar tanto para avaliar a que extremos leva a poluição nesses ambientes, quanto a sua capacidade de recuperação. O cientista descreveu o nível a que tinha chegado o porto com suas 34 ilhas, no começo da década de 1990.

Tal porto é intenso e continuamente utilizado desde meados do século XVII, e quase todo esse tempo serviu  como um vasto esgoto municipal. Em 1985 suas águas foram classificadas como as mais poluídas entre todos os portos dos Estados Unidos. Suas 34 ilhotas cheias de sujeira sempre foram consideradas de pouco valor para Boston, a maior cidade da Nova Inglaterra, apesar de as mais  próximas ficarem apenas a uma hora de distância por barco a remo, Na década de 1990, a situação mudou quando as águas servidas da área metropolitana de Boston passaram a ser purificadas por um novo sistema de filtragem. O potencial das Harbor Islands como área recreacional ficou óbvio, o que aumentou sua importância para a ciência e a educação. (Wilson, 2008, p, 28)

A seguir o nosso especialista em ecossistemas mostrou como um ambiente desses deteriorado e maltratado durante 300 anos pelo descaso do seu uso, em menos de 20 recuperou sua identidade com um ecossistema. Bastou vontade política da parte das autoridades do município, seguidas de ações eficientes.

Nos 300 anos de contínua invasão e agressão às águas do porto pagaram um preço muito alto. A micro e nano fauna e flora foi seriamente afetada. Espécies de moluscos foram extintas; a fauna marinha de grande porte migrou para ambientes mais favoráveis; as aves marinhas evitavam a baía degradada e abandonaram as ilhas e migraram e, provavelmente, algumas se perderam. O notável nessa história é a rapidez com que 300 anos de descaso, a baía recuperou, em 20 anos a maior parte da sua biodiversidade original.

Segundo Wilson o estudo dessas micro áreas é de extrema utilidade. Fazem o papel de laboratórios e de escolas ao ar livre para observar como funciona a natureza e entender como reage às agressões de todo o tipo e como se recupera com rapidez. O cenário desolador do porto de Boston e suas 34 ilhas na década de 1980, menos de 30 anos passados, é um exemplo de recuperação. Na avaliação do cientista, o arquipélago transformado em parque atrai  turistas de várias procedências, constitui-se hoje num autêntico paraíso. A água do porto é prova da resistência da vida na natureza e seu potencial de recuperação. Os moluscos voltaram a provar o leito da baía. Os peixes grandes como o robalo e anchova aproximam-se do cais. Até baleias jubarte já foram vistas na área mais externa. (cf. Wilson, 2008, p. 29ss)

Entre os ecossistemas costeiros ameaçados a Encíclica chama a atenção para a destruição dos manguezais, verdadeiros santuários da vida. A biodiversidade desses ecossistemas é de particular interesse. Constituem, por assim dizer, um laboratório natural onde é possível observar espécies terrestres, marítimas e de transição.

Depois das  faixas costeiras voltamos a nossa atenção para os mares e oceanos propriamente ditos. Esses gigantescos ecossistemas com seus ecossistemas regionais, encontram-se também em risco iminente.

Os oceanos contêm não só a maior parte da água do planeta, mas também a maior parte da vasta variedade dos seres vivos, muitos deles ainda desconhecidos por nós e ameaçados por diversas causas. Além disso, a vida nos rios, lagos, mares e oceanos, que nutre grande parte da população mundial, é afetada pela extração descontrolada dos recursos ictícios, que provoca drástica  diminuição de algumas espécies. E no entanto continuam a desenvolver-se modalidades seletivas de pesca que descartam grande parte das espécies apanhadas. Particularmente ameaçados estão os organismos marinhos que não temos em consideração, como certas formas de plantas na cadeia alimentar marinha e de que dependem, em última instância espécies que se usam para a alimentação. (Laudadto si, 40)


This entry was posted on segunda-feira, 30 de outubro de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.