Reflexões sugeridas pela Encíclica Laudato si - 1 -

O Contexto

Conceitos como ecologia, clima, aquecimento global, degradação ambiental, poluição, etc., etc., fazem parte dos discursos de intelectuais, políticos, administradores, educadores, religiosos, ambientalistas, ecologistas de todas as matizes e interesses. Fazem parte também das conversas das pessoas comuns. Pensando bem não há nada de inusitado nessa preocupação. Trata-se afinal de contas de uma problemática que afeta a todos indistintamente pois, nada mais verdadeiro do que a sentença: “A natureza existe e subsiste sem o homem, mas o homem não existe nem subsiste sem a natureza”. Essa realidade obriga a refletir sobre o comprometimento com o que está acontecendo com a “casa comum” em que habita a humanidade, lhe condiciona a existência e lhe garante a subsistência. O sucesso ou a ruina da humanidade depende da preservação “dessa sua casa”, da proteção da paisagem natural com seus animais, plantas, solos, mananciais de água e atmosfera não poluída. Numa situação extrema, um colapso ambiental implicaria inevitavelmente no colapso da espécie humana.

A grande maioria dos preservacionistas, ecologistas, integrantes de “Ongs” ou outras formas de organização, focam suas preocupações na macro fauna e macro flora. Interessa o que cai em vista a qualquer observador, o que rende dividendos econômicos e políticos imediatos e desperta admiração e comoção no grande público. Acontece que os danos à natureza mais destruidores e não raro irreversíveis passam despercebidos a muitíssimos defensores do meio ambiente. Uma área desmatada  novamente entregue aos próprios potenciais de recuperação, recompõe-se em questão de algumas décadas na sua forma e composição próxima ao original. As espécies de animais e plantas nativas, se não tiveram sido extintas, voltam dos refúgios em que se abrigaram para repovoar o antigo cenário e com ele recriando um ecossistema em muito semelhante ao que fora danificado.

Os exemplos podem ser  encontrados, por ex., em toda a encosta da serra, de Torres a Santa Maria. Há 50 ou 60 anos passados suas encostas haviam sido desmatadas, excetuando a coroa dos morros totalmente impraticáveis pela  agricultura familiar. Hoje, em toda essa região a floresta secundária com uma composição, em grandes linhas igual à original virgem, cobre as encostas e desce até os arroios nas parte mais plana. Com elas voltou a grande maioria das aves silvestres: inhambus, aracuãs, tucanos, papagaios, pombas além das espécies de menor tamanho. Dos mamíferos carnívoros  e herbívoros, por enquanto pelo menos, não se perceberam vestígios de onças, pumas, antas e outras de porte maior.

A ação invasiva sobre o meio ambiente assume proporções de catástrofe quando a micro e nano fauna for afetada ao ponto de por em risco o equilíbrio que mantém em funcionamento esse micro universo e a sua relação funcional com a macro flora e fauna. Essa é uma questão que não costuma ser aprofundada em seminários, congressos, simpósios  e similares nos quais se discutem os problemas relacionados com o meio ambiente e são propostas iniciativas, ações e estratégias de maior alcance. As razões são óbvias. Obrigatoriamente deveriam entrar nos debates o uso de agrotóxicos, herbicidas e inseticidas, produtos químicos para combater pragas agrícolas e outros similares. Os lobies  da indústria química e da indústria responsável pela emissão de gás carbônico, entram em campo e com argumentos como produção, produtividade, criação de empregos e outros do gênero, contaminam os arrazoados objetivos, com motivações de natureza econômica e ou social que se refletem nas decisões técnicas e geralmente as frustram.

Pensando bem é preciso contar com esse pressuposto para tomar qualquer decisão nessa área. Para se formar uma ideia da importância desse micro e nano universo que age na biosfera conferindo-lhe equilíbrio e a própria possibilidade de continuar existindo, vão aí alguns dados fornecidos pelo entomólogo e especialista em ecossistemas naturais e humanizados, Edward Wilson. No capítulo quarto do seu livro “A Criação – como salvar a vida na terra”  detalha esse universo de seres vivos aparentemente “sem importância”. “esses bichinhos” como são tratados pelo leigo em zoologia. As plantas verdes bem com as incontáveis legiões de micro-organismos e minúsculos invertebrados, são a matriz que sustenta a nossa vida. (A Criação, 2008, p. 41).

Wilson  continua explicando que pela sua diversidade genética esse micro mundo permite dividir funções e papéis em ecossistemas  num grau altíssimo de resolução; que são tão numerosas algumas espécies que estão presentes em todo metro quadrado de terra; que suas funções são calibradas de tal maneira que, se uma espécie for eliminada, uma outra está à espera para tomar o seu lugar e sua função; que espécies de todo tipo de “mato” ou “bichinhos” governam a natureza exatamente como nos convém; que no decorrer da pré-história a humanidade evoluiu de modo a depender das ações combinadas desses seres vivos e da garantia  da estabilidade que a biodiversidade oferece ao mundo”. (cf. A Criação, 2008, p. 41).

Wilson  continua suas considerações focando nos insetos, sua especialidade, os argumentos para defender a vida no planeta. Em 2006 as espécies de insetos classificadas somavam em torno de 900.000. Estima-se que  o total de espécies situe-se em torno dos 10 milhões.  A  biomassa total dos insetos existentes neste momento, é incalculável pois, falamos em 1 milhão de trilhão. O peso, por ex., da biomassa das formigas, totalizando 10 mil trilhões, equivale a de 6,5 bilhões de seres humanos. Esses números, embora ainda provisórios e subestimados, indicam que os insetos ocupam em volume o topo da escala animal. Os Copípodos, minúsculos crustáceos marinhos rivalizam com os insetos em termos de biomassa. Bem no ápice encontram-se os vermes nematoides. Formam populações imensas e somam milhões de espécies, responsáveis por quatro quintos de todos os animais. Wilson pergunta: “Será que alguém acredita que essas pequeninas criaturas existem apenas para preencher espaço?” (A Criação. 2008, p. 41-42)

O nosso cientista dirige sua atenção para ressaltar a importância dos insetos na manutenção do equilíbrio ambiental e na própria sobrevivência  do homem que depende dos ecossistemas. “As pessoas precisam dos insetos para sobreviver, mas os insetos não precisam de nós”. (A Criação, 2008, p. 42).

Se a humanidade desaparecesse, provavelmente nenhuma espécie de insetos deixaria de existir por essa razão. Na eventualidade da extinção da espécie humana, num lapso de tempo relativamente curto, a natureza com seus ecossistemas voltaria ao estado de equilíbrio de 10.000 anos passados. Mas se os insetos desaparecessem a harmonia e o equilíbrio da natureza com seus ecossistemas, entraria em colapso como num efeito dominó, numa rapidez assustadora. Wilson apresenta os acontecimentos em sequência de cascata que seguiram após a extinção dos insetos.

1. A maioria das plantas com flores, os angiospermas,  param de se reproduzir.
2. Entre elas, a maioria das espécies herbáceas decresce até a extinção. Os arbustos e a árvores polinizadas por insetos sobrevivem mais alguns anos e em casos raros alguns séculos.
3. A grande maioria das aves e outros vertebrados terrestres, privados de sua alimentação especializada de folhas frutas e insetos, segue as plantas  e cai na extinção.
4. Desprovido de insetos, o solo não é revolvido, o que acelera o declínio das plantas, uma vez que são os insetos – e não as minhocas como em geral se pensa – os principais encarregados de remexer e renovar o solo.
5. Populações de fungos e bactérias explodem e prosseguem no auge durante alguns anos. enquanto metabolizam o material das plantas e animais mortos, que vai-se acumulando.
6 Os tipos de relva polinizados pelo vento e um punhado de espécies de samambaias e coníferas se alastram pela maior parte das áreas deflorestadas e depois conhecem algum declínio, à medida que o solo se deteriora.
7. A espécie humana sobrevive, mas volta a viver de grãos  polinizados pelo vento e de pesca marinha. Porém, com a fome generalizada durante as primeiras décadas, as populações humanas despencam para uma pequena fração dos seus níveis anteriores. As guerras pelo controle dos recursos cada vez mais escassos, os sofrimentos, o declínio tumultuado para um barbarismo da Idade das Trevas seriam sem precedentes na história humana.
8. Apegando-se à sobrevivência em um mundo devastado, aprisionado em uma verdadeira Idade das Trevas do  ponto de vista ecológico, os sobreviventes iriam rezar implorando a volta das plantas e dos insetos. (A Criação, 2008, p. 43-44)

Evidentemente a extinção de todos os insetos e suas consequências é um cenário com probabilidades muito remotas de se concretizar. Acontece, entretanto, que o uso exagerado e indiscriminado de inseticidas já provocou as preocupações de cientistas da envergadura de Edward Wilson. O abuso no recurso aos herbicidas, além de eliminar indiscriminadamente plantas e insetos afeta seriamente a micro e nano fauna, organismos vivos dos quais depende  o equilíbrio edafológico e em casos extremos torna os solos estéreis, improdutivos e de difícil recuperação.

O alerta vale também para as ações invasivas do homem nos ecossistemas naturais. Sua substituição por ecossistemas humanizados, implica necessariamente no extermínio  de  muitas espécies de animais representantes de todos os níveis taxonômicos. Algumas espécies de mamíferos, aves e répteis conseguem migrar e retornam mais tarde quando os ecossistemas naturais se recompõem. Os estragos da degradação fazem-se sentir também sobre o clima, alteração da umidade do ar, circulação das correntes da atmosfera, diminuição ou desaparecimento de fontes, córregos, riachos, arroios e rios.

Acontece que dificilmente se encontram ecossistemas sem a presença do homem ou por ele ainda não visitados. Na sua grande maioria a invasão e a interferência já foi de tal ordem que se chegou aos limites do tolerável, se é que já não foram ultrapassados. Essa situação deve servir de alerta e convidar para um reflexão séria, profunda e responsável sobre o que está acontecendo com “a nossa mãe e pátria”.

Em primeiro lugar o alerta tem como endereço os governantes a quem por ofício cabe zelar pelo bem comum. Lembra também àqueles que de alguma forma se empenham pela preservação da saúde do planeta, para que não caiam na armadilha de interesses mais ou menos nobres; que façam da sua cruzada o cumprimento de uma missão em benefício do bem comum, a terra com seus recursos que permitem à humanidade  viver e  progredir; que o esforço e a dedicação em favor da saúde da “querência” da espécie humana se alimente da convicção de que se trata de um bem a que todos tem direito, independentemente  de raça, cor, posição social, riqueza ou pobreza; que, como consequência  os mova o dever de solidariedade; que esse compromisso de solidariedade tem como fundamento o postulado ético que decorre do fato de a natureza ser um bem comum que deve ser usufruído com parcimônia  e num clima de fraternidade universal.

Antes ainda de começar a refletir sobre a “Encíclica Laudato se”, que  daqui para frente  chamaremos carinhosamente de “Encíclica Verde” do papa Francisco, e para melhor contextualizá-la, permitimo-nos resumir o pensamento ecológico de mais alguns cientistas de renome. Segundo o Pe. Balduino Rambo, jesuíta como o papa Fancisco, a unidade, o sentido, a origem e o destino do universo e da natureza, encontra a explicação última fora e além das conclusões que  a ciência sugere. Para ele, botânico respeitado pela comunidade científica  internacional, o universo e a natureza são, na sua origem, obra de um ato criador divino. A evolução resume-se na realização das potencialidades com que esse ato municiou a matéria, o  “estofo” do universo, lá no começo. Sendo assim, em todas as  manifestações a natureza, especialmente nos seres vivos, o observador isento de preconceitos percebe o eco desse  ato criador primordial.  Em outras palavras, as criaturas, cada uma à sua maneira, revelam o dedo do Criador e as pessoas sensíveis ao sobrenatural intuem a Sua presença em  cada uma delas. Rambo, descansando à beira dos precipícios do Canyon do Fortaleza em Cambará, refletindo sobre  presença do divino naquela paisagem única, registrou no seu diário não de cientista mas de místico amante do belo como expressão suprema da perfeição da natureza.

São únicas  as pinturas da natureza na bela terra de Deus, como as da garganta da Pedra Branca. Poderia chamar-se o quadro de precipícios perpendiculares, de névoas efervescentes e trovoadas uivantes, de mata silente e escolhos altos, cheios de clarividência pétrea, de pintura imperfeita mas bem mais do que isso. É uma construção gigantesca de força e simplicidade que nunca para de rolar para frente. Alguém mora nessas profundezas que sussurram, Alguém vigia nessa torre solitária. Ele chama o eco, apascenta a névoa, brinca com o raio e o trovão nos lugares solitários. (Diário, 9 de fevereiro de 1948)

Por essa razão a natureza é o livro dos livros da Revelação; por essa razão também é uma dádiva com que o Criador presenteou o homem e a ele se revelou e continua revelando; ainda, por essa razão é um bem comum; e também por essa razão  o seu uso e fruto e a exploração de seus recursos implica em compromisso e responsabilidade ética.

Outro cientista, Teilhard de Chardin, jesuíta como o papa Francisco, sem falar abertamente em Criação como Rambo, leva nessas direção a concepção da natureza que apresenta. Tudo no universo tem o seu começo, seu ponto de partida, no “Alfa”. Diversifica-se e complexifica-se ao extremo para depois convergir para o mesmo ponto de encontro, o “Ômega”. É  legítima a leitura de que o “Alfa” identifica-se com o ator criador responsável pelo “estofo” do universo contendo a ilimitada potencialidade de desdobrar-se, de diversificar-se, complexificar-se, enfim de municiar a evolução com o potencial necessário para “criar” o mundo e a natureza com tudo que nela existe e vive, surge e  desaparece; que as leis da evolução alimentam-se nesse acontecimento inicial e assim dão sentido à diversificação e  complexifcação. Balizada pela teleologia que confere sentido  a tudo que acontece na natureza, a dinâmica vai ao encontro do ponto de chegada, por sua vez, a razão última de tudo quanto existe, o “ômega”. É legítimo concluir, como o próprio Teilhard dá a entender no fim da sua obra clássica, “O Fenômeno Humano”, que o “Alfa” é uma metáfora para significar o Deus Criador que põe tudo em andamento e o “Ômega” a metáfora que significa o retorno da obra ao seu ponto de partida, isto é, ao mesmo Criador.


This entry was posted on domingo, 13 de agosto de 2017. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.