Theodosius Dobzhansky (1900-1975) - 3

Continuando, Dobzansky defende com argumentos vindos da genética de que o homem é descendente de um ancestral comum com o símios antropoides. Defende o pensamento absolutamente dominante de que foram as mutações genéticas que o tornaram talvez o mais competitivo e o mais bem sucedido de todas espécies de mamíferos. “Fazem milhões de anos, nossos antepassados eram animais pouco numerosos e inconspícuos que aparentemente viviam na África; atualmente o homem é um verdadeiro cosmopolita, que vive em todas as partes do mundo” (Dozhansky, idem, p. 157). Pelo que é legítimo concluir das afirmações do autor até aqui, as mutações  que ocorreram na espécie humana no decorrer de sua gênese, fizeram com que se transformasse numa das mais bem adaptadas pela versatilidade que seu genoma lhe proporciona.  Salvo melhor juízo penso que aqui escapou ao ilustre geneticista um detalhe que não parece de pouca importância. Observando bem a estrutura anatômica ficam visíveis algumas características que colocam o homem em situação de inferioridade aos animais,  tomando em consideração a   competição seletiva ao nível instintivo. Observando as mãos sob os aspecto anatômico elas não oferecem especialização às vezes levada quase a exagero nos animais. Isso  faz com que não sirvam para nada em termos de execução de uma tarefa qualquer, como por ex., as garras de um tamanduá ou tatu, o casco de um cavalo, os dentes caninos de leão ou os  dentes de um roedor. Acontece que as mãos, os pés, os dente e outros recursos anatômicos do homem são capazes de dar conta de todas essas tarefas, porém, com uma eficiência muito menor do que seus competidores na natureza. As mãos servem para cavar, mas cavam mal, servem para agarrar, mas agarram mal, servem para esmurrar, mas esmurram mal. Aos dentes caninos cabem apenas funções complementares  e  sua utilidade não passa muito além do completar a arcada dentária. Assim poderíamos analisar outros detalhes da anatomia humana comparando-os com os dos animais. Pelo fato, porém, de as mãos, por assim dizer não servirem para nenhuma função especializada, a serviço da inteligência racional transformam-se num instrumento de multi-utilidade a extremos de refinamento improvável no mundo animal. Para ilustrar basta observar o que um violinista é capaz de exigir dos dedos para extrair do instrumento  vibrações nos limites do impossível. Ainda mais o manuseio correto e eficiente da parafernália da informática indispensável para tocar para frente a civilização de hoje, é impensável sem incrível versatilidade das mãos. Considerando bem a evolução anatômica tornou a espécie humana uma das menos competitivas entre seus pares no mundo animal. Entregue somente a seu potencial físico-anatômico a espécie humana quem sabe já teria sido varrido do planeta ou reduzida a uma existência sem brilho. O que então faz com ela é provavelmente a única espécie entre os mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, em franca expansão? A resposta vem de uma característica exclusiva da espécie humana: a Inteligência Reflexa. Para entender mais facilmente por que a inteligência reflexa confere tamanha vantagem competitiva, já os antigos gregos parecem ter encontrado uma resposta que satisfaz até hoje. Para eles, a natureza foi estruturada sobre níveis de complexidade ascendentes, ou seja: os minerais existem, os vegetais existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o homem existe, vegeta, sente e raciocina. A capacidade do raciocínio, se preferirmos, da inteligência reflexa, faz a diferença. De um lado a espécie humana tem as suas raízes  como espécie existencialmente mergulhadas no reino vegetal e no reino animal. Como as  plantas e animais sua existência biológica é comandada pelas mesmas leis gerais da biologia. Vegeta como a plantas, sente, tem consciência, memória e inteligência como os animais, principalmente os mamíferos que lhe são taxonomicamente mais próximos. Supera entretanto, esses níveis pela inteligência reflexa, pela capacidade de raciocinar. Em outras palavras. Um cachorro ou um macaco sabem coisas, mas o homem é o único a saber o “porque” do seu saber. Os animais morrem mas o homem é o único que sabe que vai morrer. Essa capacidade de tomar consciência de uma situação ou de um fato, observá-lo, interpretá-lo, encontrar soluções alternativas para lidar com ele, escolher o caminho que parece o mais acertado para solucionar desafios, são todas operações mentais que só se observam no comportamento do homem e dependem de raciocínio, de inteligência reflexa. É nessa prerrogativa que deve ser buscada a enorme vantagem competitiva para a sobrevivência, sobre os demais seres vivos que com ele disputam o espaço e os meios de sobrevivência. O próprio Dobzhansky resumiu  essa superioridade em competir ao observar que

O mais notável é que tantos outros organismos impõem-se ao meio ambiente mudando os genes, o ser humano o faz geralmente modificando a cultura, adquirida e transmitida por aprendizado. Com efeito numerosas espécies de animais adaptaram-se a climas frios desenvolvendo espessas proteções de lã ou pelos, hibernando durante o período de frio; o homem dominou o frio acendendo um fogo e confeccionando vestimentas para abrigar-se. A adaptação por meio da cultura é muitíssimo mais rápida e eficiente do que a adaptação genética; uma nova ideia ou acontecimento, criado por uma só pessoa, pode converter-se em patrimônio da humanidade num espaço de tempo relativamente curto. (Dobzhansky, 1969,  p. 157)

 Todos os sábios que analisamos até aqui declaram, de uma forma ou outra, sua perplexidade frente a essa constatação inequívoca e se perguntam: Como se deu a travessia do “Rubicão” que traça a linha de fronteira entre o instintivo e o racional. Como todos eles com maior ou menor convicção defendem a evolução natural como mecanismo responsável pelas mudanças, adaptações e novidades que surgiram e surgem ainda hoje  em a natureza, tentaram explicar o que é possível explicar pelos genes capazes de reagir com mutações em contato com o ambiente em contínua transformação. Não é aqui novamente o lugar para discutir a mais diversas soluções que foram apresentadas pelos diferentes autores. Uma outra prerrogativa privativa da espécie humana pelos menos tão intrigante quanto a capacidade de refletir é a Lei Moral inata ao homem. Esse enigmático instrumento que se manifesta em todas as pessoas e que, desde muito cedo na infância faz com que a criança comece a distinguir entre o certo e o errado. A explicação, via evolução natural da Inteligência Racional e da Lei Moral representam um desafio até agora não superado pelos cientistas de fato sérios e confiáveis. Também não é aqui o lugar  para aprofundar essa questão.

As considerações que  acabamos de fazer, podem até parecer um desvio desnecessário ao foco central em torno do qual giram as reflexões, isto é, “A Natureza como  Síntese”. Entretanto, elas fazem todo o sentido nesse contexto na medida em que apontam nessa direção.

A  partir do ponto de vista de que  todas as espécies vivas, incluindo o homem, são o resultado da evolução global da vida na terá, alguns aspectos dessa gênese dessa história sugerem um aprofundamento da reflexão que desenvolvemos  até aqui. O primeiro fato é a evidência de que a vida na terra tem  o seu ponto de partida nas “arqueobactérias”, formas primitivas e relativamente simples que marcam a transição entre o orgânico não  vivo e o propriamente vivo. Pelos dados fornecidos pelos métodos de datação da cronologia terrestre disponíveis, os vestígios de vida mais remotos são encontrados em formações rochosas que datam de cerca de  3,5 bilhões de anos. Trata-se de diferentes formas de micróbios, os quais, presume-se, que eram dotados da capacidade de armazenar informações, quem sabe pelo DNA. Auto-reproduziam-se além de dotadas de um potencial indefinido de evoluir para inúmeras formas de vida. Dessas formas de vida é legítimo concluir que, pelos mecanismos e leis da evolução, descendem todas as espécies de seres vivos que compõem atualmente a biosfera. Pelo que a evolução tem a apresentar como responsável por essa fantástica ascensão do simples lá no começo ao extremo da complexidade de hoje, desde  então até o estágio atual da natureza viva, não houve rupturas, não se percebem “lacunas” que não sejam explicáveis pela ciência, até a chegada do homem. A dinâmica evolutiva é continua e ininterrupta e caracteriza-se pela complexificação ascendente e pela capacidade inesgotável de produzir novas espécies e descartar ao longo dessa trajetória aquelas que as mutações em combinação com as alterações do meio ambiente, tornam menos competitivas. O que de momento interessa nesse processo é a complexificação. que, aliás, representa um dos conceitos-chave sobre os quais  Teilhard de Chardin apoia a sua grandiosa síntese do universo e da natureza. Para ele a complexificação ascendente permite uma manifestação cada vez mais explicita da consciência. Presente rudimentarmente nas formas mais arcaicas de vida ela vai aflorando na medida em que as formas de vida se complexificam, até o refinamento extremo nas formas mais evoluídas, orientando os instintos que garantem segurança e competitividade.
No topo dessa complexidade  anatômica e fisiológica, somada à plena tomada de consciência do mundo que o rodeia, situa-se o homem. Até aqui tudo muito certo e muito lógico. Um senão, porém, vem a essa altura complicar a lisura dessa história. O homem tem tudo perfeitamente igual ao mundo animal, inclusive seu instintos, consciência, inteligência e conhecimento daquilo que o cerca. Acontece entretanto que ele ocupa uma posição, não mínimo singular, senão qualitativamente diferente, pela inteligência reflexa com a qual é capaz de avaliar os objetos que encontra, as realidades com se defronta, as situações em que é obrigado a movimentar-se. A isso soma-se a lei moral que confere a capacidade única de avaliar os seus atos e os dos seus semelhante,  distinguindo entre o certo e o errado, livre para optar por caminhos alternativos, inclusive equivocados ou de auto destruição. Dessa forma o ser humano dispõe de liberdade  de opção e  e da tomada de  decisões alternativas. E onde há liberdade de escolha, onde, portanto, há possibilidades, há esperança e onde há esperança a realização plena é possível, “o bem como tal” é possível, conforme racionou o filósofo da esperança, Ernst Bloch.

Essas reflexão até pode parecer um desvio estranho no caminho que estamos seguindo. Salvo melhor juízo, não é. Serviu para mostrar como a espécie humana ocupa definitivamente o topo da ascensão biológica. Mais. Ela parece ter atingido o limite das possibilidades puramente genético-evolutivas para avançar mais. O fato é que essa base constitui-se na condição sem a qual  a inteligência  reflexa e demais características superiores exclusivas da espécie humana, se possam manifestar. Em outras palavras. A natureza biológica específica do homem, fruto do processo biológico da evolução, desenvolveu os instrumentos por meio dos quais, ele é capaz de ativar a sua capacidade racional, de articular sons numa escala inexistente  entre as espécies animais e fazer valer as exigências da Lei Moral. Mal comparando a evolução genético-biológica põem à disposição os instrumentos que permitem ao homem executar suas sinfonias, expressar por mil modalidades de linguagens o seu universo cultural e intercambiá-lo com seus semelhantes, fixá-lo nas mais diversas formas de escrita, transmiti-lo às novas gerações. Em outras palavras novamente a evolução preparou as cordas vocais como instrumentos da fala, não porém, “o que”  é para ser transmitido. Preparou o violino mas não as melodias que o virtuose é capaz de estrair dele. O especialista em linguagem Daniel Everett lançou um livro com significativo título: “Language a Tool of Culture” – “A Linguagem uma Ferramenta  da Cultura”, no qual defende uma posição muito próxima para a linguagem, daquela de Dobzhansky.

Da mesma forma como os genes determinam nossa capacidade de falar, não o que dizemos, os princípios éticos que aceitamos não provêm da nossa herança biológica, senão pela cultural. A evolução biológica do homem previu a base orgânica para sua evolução cultural. Por servir como base do progresso cultural ela não deve ser apenas preservada nos limites do possível, senão também aperfeiçoada e valorizada. A planificação da evolução humana, incluindo a biológica, a biologia deve ser direcionada para a perspectiva  da herança espiritual e cultural do homem. Neste contexto inclui-se a religião, a filosofia, a arte e o conjunto do conhecimento e experiência acumulado pela humanidade. (Dobzhnsky, 1969,  p. 177)

Essas informações de Dobzhansky somadas às muitas outras que encontramos no decorrer dessas reflexões, subsidiam, cada uma à sua maneira, a tese de que a Natureza constitui-se numa monumental síntese. Na perspectiva sistêmica ou organísmica de Ludwig von Bertalanffy , na compreensão de Teilhard de Chardin e de Balduino Rambo, o universo, a natureza e todas formas de vida nela encontráveis, extintas ou não, são o resultado dessa síntese, formando por assim dizer um “super-sistema”. E o próprio conceito de sistema ou organismo afirmam implicitamente que os sub-sistemas que compõem o todo são, por sua vez e à sua maneira, resultado de uma síntese. Edward Wilson, pesquisando formigas e outros insetos e observando ecossistemas naturais e humanizados chegou à conclusão de que a Natureza é um Fato objetivo”, isto é, resultado de uma síntese. Francis Collins estudando as características do genoma humano como sendo o  responsável por um surpreendente parentesco biológico entre todas as formas de vida, desde as mais rudimentares até as mais evoluídas, incluindo o homem, formulou o conceito de “BioLogos”  para fazer entender como, a partir dos dados da genética,  resultou a síntese de que nos estamos ocupando.

Mas há um outro aspecto paralelo a essa linha de interpretar a natureza que, embora controversa entre os que se ocupam com essa temática que não pode se desprezada, apresentada  por Collins e que pode ser percebida nas entre linhas dos demais. Referimo-nos as diversas interpretações de como a evolução preparou o caminho para possibilitar o surgimento do homem. Foi apresentada na sua forma extrema pela teoria “antrópica”, pela qual a natureza existe em função do homem, preparando o terreno para tal  e as condições para se desenvolver biológica e culturalmente objeto dos comentários de Collins (cf. A Linguagem de Deus, p.). Implícita nessa maneira de interpretar o acontecer da história da vida, teve como finalidade o homem, o que significa que foi orientado por uma teleologia.

Dobzhansky concluiu seu livro sobre a “Hereditariedade e Natureza do Homem” com uma reflexão que faz todo o sentido para aqueles que se preocupam  com a saúde do nosso planeta, a nossa morada, a nossa pátria, a nossa querência ou a “nossa mãe e pátria”.


A evolução levou o homem a uma encruzilhada da qual não há escapatória e não permite voltar atrás. Nosso passado animal ficou irremediavelmente perdido. Nem querendo não é possível retornar a ele. Está em questão de um lado o ocaso cultural e biológico e, do outro, uma progressiva adaptação da cultura ao lastro hereditário dos genes e suas mutações e, do outro a cultura induzindo as mutações nos  genes. Vem aqui  ao caso a metáfora de Nietzsche que imagina a humanidade equilibrando-se sobre uma corda estendida sobre um  abismo. Na primeira alternativa a humanidade não chega na outra borda do precipício. Cai no abismo antes de a alcançar. Na segunda o condicionamento recíproco entre os genes e a cultura, garante, apesar dos pesares, alcançar  a outra margem. Está nas mãos do homem escolher a alternativa certa para que a travessia ocorra sem um catástrofe definitiva e irreversível. Uma postura otimista permite acreditar que a espécie humana não se precipite no abismo. Já que a nossa época é caracterizada por muitos como a idade da ansiedade é preciso contrapor-lhe uma boa dose de otimismo. Dobzhansky declara-se otimista embora a ansiedade domine uma alta porcentagem das pessoas. Seu otimismo provem da convicção de que a natureza e o homem são frutos da evolução e a humanidade junto com a natureza continuarão evoluindo indefinidamente para o futuro. Olhando em nosso derredor constatamos que existe um enorme volume de fealdades, temperadas por não menos belezas; há muita coisa boa acontecendo, como também muito coisa abominável. O que deve prevalecer não é o pessimismo destruidor mas o otimismo e consequentemente a esperança criadora. O mundo não foi criado de forma estática por uma única ação criadora, A criação não é um ato isolado mas um processo, cujo êxito não pode ser garantido pela evolução. Entretanto, o homem tem todas as condições de lutar para que o processo não termine num beco sem saída. Na última frase do seu livro, Dobzhansky conclui sua reflexão: “Sem dúvida o homem está de posse das ferramentas para assegurar êxito e essa é uma batalha que confere significado e dignidade à vida humana individual e coletiva. Permita-me repetir, a evolução confere esperança”. (Dobzhansky, 1969,  p. 178).

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