Continuando,
Dobzansky defende com argumentos vindos da genética de que o homem é
descendente de um ancestral comum com o símios antropoides. Defende o
pensamento absolutamente dominante de que foram as mutações genéticas que o
tornaram talvez o mais competitivo e o mais bem sucedido de todas espécies de
mamíferos. “Fazem milhões de anos, nossos antepassados eram animais pouco
numerosos e inconspícuos que aparentemente viviam na África; atualmente o homem
é um verdadeiro cosmopolita, que vive em todas as partes do mundo” (Dozhansky,
idem, p. 157). Pelo que é legítimo concluir das afirmações do autor até aqui,
as mutações que ocorreram na espécie
humana no decorrer de sua gênese, fizeram com que se transformasse numa das
mais bem adaptadas pela versatilidade que seu genoma lhe proporciona. Salvo melhor juízo penso que aqui escapou ao
ilustre geneticista um detalhe que não parece de pouca importância. Observando
bem a estrutura anatômica ficam visíveis algumas características que colocam o
homem em situação de inferioridade aos animais,
tomando em consideração a
competição seletiva ao nível instintivo. Observando as mãos sob os
aspecto anatômico elas não oferecem especialização às vezes levada quase a
exagero nos animais. Isso faz com que
não sirvam para nada em termos de execução de uma tarefa qualquer, como por
ex., as garras de um tamanduá ou tatu, o casco de um cavalo, os dentes caninos
de leão ou os dentes de um roedor.
Acontece que as mãos, os pés, os dente e outros recursos anatômicos do homem
são capazes de dar conta de todas essas tarefas, porém, com uma eficiência
muito menor do que seus competidores na natureza. As mãos servem para cavar,
mas cavam mal, servem para agarrar, mas agarram mal, servem para esmurrar, mas
esmurram mal. Aos dentes caninos cabem apenas funções complementares e sua
utilidade não passa muito além do completar a arcada dentária. Assim poderíamos
analisar outros detalhes da anatomia humana comparando-os com os dos animais.
Pelo fato, porém, de as mãos, por assim dizer não servirem para nenhuma função
especializada, a serviço da inteligência racional transformam-se num
instrumento de multi-utilidade a extremos de refinamento improvável no mundo
animal. Para ilustrar basta observar o que um violinista é capaz de exigir dos
dedos para extrair do instrumento
vibrações nos limites do impossível. Ainda mais o manuseio correto e
eficiente da parafernália da informática indispensável para tocar para frente a
civilização de hoje, é impensável sem incrível versatilidade das mãos.
Considerando bem a evolução anatômica tornou a espécie humana uma das menos
competitivas entre seus pares no mundo animal. Entregue somente a seu potencial
físico-anatômico a espécie humana quem sabe já teria sido varrido do planeta ou
reduzida a uma existência sem brilho. O que então faz com ela é provavelmente a
única espécie entre os mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, em franca
expansão? A resposta vem de uma característica exclusiva da espécie humana: a
Inteligência Reflexa. Para entender mais facilmente por que a inteligência
reflexa confere tamanha vantagem competitiva, já os antigos gregos parecem ter
encontrado uma resposta que satisfaz até hoje. Para eles, a natureza foi
estruturada sobre níveis de complexidade ascendentes, ou seja: os minerais
existem, os vegetais existem e vegetam, os animais existem, vegetam e sentem, o
homem existe, vegeta, sente e raciocina. A capacidade do raciocínio, se
preferirmos, da inteligência reflexa, faz a diferença. De um lado a espécie
humana tem as suas raízes como espécie existencialmente
mergulhadas no reino vegetal e no reino animal. Como as plantas e animais sua existência biológica é
comandada pelas mesmas leis gerais da biologia. Vegeta como a plantas, sente,
tem consciência, memória e inteligência como os animais, principalmente os
mamíferos que lhe são taxonomicamente mais próximos. Supera entretanto, esses
níveis pela inteligência reflexa, pela capacidade de raciocinar. Em outras
palavras. Um cachorro ou um macaco sabem coisas, mas o homem é o único a saber o
“porque” do seu saber. Os animais morrem mas o homem é o único que sabe que vai
morrer. Essa capacidade de tomar consciência de uma situação ou de um fato, observá-lo,
interpretá-lo, encontrar soluções alternativas para lidar com ele, escolher o
caminho que parece o mais acertado para solucionar desafios, são todas
operações mentais que só se observam no comportamento do homem e dependem de
raciocínio, de inteligência reflexa. É nessa prerrogativa que deve ser buscada
a enorme vantagem competitiva para a sobrevivência, sobre os demais seres vivos
que com ele disputam o espaço e os meios de sobrevivência. O próprio Dobzhansky
resumiu essa superioridade em competir
ao observar que
O mais notável é que tantos outros organismos
impõem-se ao meio ambiente mudando os genes, o ser humano o faz geralmente
modificando a cultura, adquirida e transmitida por aprendizado. Com efeito
numerosas espécies de animais adaptaram-se a climas frios desenvolvendo
espessas proteções de lã ou pelos, hibernando durante o período de frio; o
homem dominou o frio acendendo um fogo e confeccionando vestimentas para
abrigar-se. A adaptação por meio da cultura é muitíssimo mais rápida e eficiente
do que a adaptação genética; uma nova ideia ou acontecimento, criado por uma só
pessoa, pode converter-se em patrimônio da humanidade num espaço de tempo
relativamente curto. (Dobzhansky, 1969, p. 157)
Todos os sábios que analisamos até aqui
declaram, de uma forma ou outra, sua perplexidade frente a essa constatação
inequívoca e se perguntam: Como se deu a travessia do “Rubicão” que traça a linha
de fronteira entre o instintivo e o racional. Como todos eles com maior ou
menor convicção defendem a evolução natural como mecanismo responsável pelas
mudanças, adaptações e novidades que surgiram e surgem ainda hoje em a natureza, tentaram explicar o que é
possível explicar pelos genes capazes de reagir com mutações em contato com o
ambiente em contínua transformação. Não é aqui novamente o lugar para discutir
a mais diversas soluções que foram apresentadas pelos diferentes autores. Uma
outra prerrogativa privativa da espécie humana pelos menos tão intrigante
quanto a capacidade de refletir é a Lei Moral inata ao homem. Esse enigmático
instrumento que se manifesta em todas as pessoas e que, desde muito cedo na
infância faz com que a criança comece a distinguir entre o certo e o errado. A
explicação, via evolução natural da Inteligência Racional e da Lei Moral
representam um desafio até agora não superado pelos cientistas de fato sérios e
confiáveis. Também não é aqui o lugar
para aprofundar essa questão.
As
considerações que acabamos de fazer,
podem até parecer um desvio desnecessário ao foco central em torno do qual
giram as reflexões, isto é, “A Natureza como
Síntese”. Entretanto, elas fazem todo o sentido nesse contexto na medida
em que apontam nessa direção.
A partir do ponto de vista de que todas as espécies vivas, incluindo o homem,
são o resultado da evolução global da vida na terá, alguns aspectos dessa
gênese dessa história sugerem um aprofundamento da reflexão que
desenvolvemos até aqui. O primeiro fato
é a evidência de que a vida na terra tem
o seu ponto de partida nas “arqueobactérias”, formas primitivas e relativamente
simples que marcam a transição entre o orgânico não vivo e o propriamente vivo. Pelos dados
fornecidos pelos métodos de datação da cronologia terrestre disponíveis, os vestígios
de vida mais remotos são encontrados em formações rochosas que datam de cerca
de 3,5 bilhões de anos. Trata-se de
diferentes formas de micróbios, os quais, presume-se, que eram dotados da
capacidade de armazenar informações, quem sabe pelo DNA. Auto-reproduziam-se
além de dotadas de um potencial indefinido de evoluir para inúmeras formas de
vida. Dessas formas de vida é legítimo concluir que, pelos mecanismos e leis da
evolução, descendem todas as espécies de seres vivos que compõem atualmente a
biosfera. Pelo que a evolução tem a apresentar como responsável por essa
fantástica ascensão do simples lá no começo ao extremo da complexidade de hoje,
desde então até o estágio atual da
natureza viva, não houve rupturas, não se percebem “lacunas” que não sejam
explicáveis pela ciência, até a chegada do homem. A dinâmica evolutiva é
continua e ininterrupta e caracteriza-se pela complexificação ascendente e pela
capacidade inesgotável de produzir novas espécies e descartar ao longo dessa
trajetória aquelas que as mutações em combinação com as alterações do meio
ambiente, tornam menos competitivas. O que de momento interessa nesse processo
é a complexificação. que, aliás, representa um dos conceitos-chave sobre os
quais Teilhard de Chardin apoia a sua grandiosa
síntese do universo e da natureza. Para ele a complexificação ascendente
permite uma manifestação cada vez mais explicita da consciência. Presente
rudimentarmente nas formas mais arcaicas de vida ela vai aflorando na medida em
que as formas de vida se complexificam, até o refinamento extremo nas formas
mais evoluídas, orientando os instintos que garantem segurança e
competitividade.
No
topo dessa complexidade anatômica e
fisiológica, somada à plena tomada de consciência do mundo que o rodeia, situa-se
o homem. Até aqui tudo muito certo e muito lógico. Um senão, porém, vem a essa
altura complicar a lisura dessa história. O homem tem tudo perfeitamente igual
ao mundo animal, inclusive seu instintos, consciência, inteligência e
conhecimento daquilo que o cerca. Acontece entretanto que ele ocupa uma
posição, não mínimo singular, senão qualitativamente diferente, pela
inteligência reflexa com a qual é capaz de avaliar os objetos que encontra, as
realidades com se defronta, as situações em que é obrigado a movimentar-se. A
isso soma-se a lei moral que confere a capacidade única de avaliar os seus atos
e os dos seus semelhante, distinguindo
entre o certo e o errado, livre para optar por caminhos alternativos, inclusive
equivocados ou de auto destruição. Dessa forma o ser humano dispõe de
liberdade de opção e e da tomada de
decisões alternativas. E onde há liberdade de escolha, onde, portanto,
há possibilidades, há esperança e onde há esperança a realização plena é
possível, “o bem como tal” é possível, conforme racionou o filósofo da
esperança, Ernst Bloch.
Essas
reflexão até pode parecer um desvio estranho no caminho que estamos seguindo.
Salvo melhor juízo, não é. Serviu para mostrar como a espécie humana ocupa
definitivamente o topo da ascensão biológica. Mais. Ela parece ter atingido o
limite das possibilidades puramente genético-evolutivas para avançar mais. O
fato é que essa base constitui-se na condição sem a qual a inteligência reflexa e demais características superiores
exclusivas da espécie humana, se possam manifestar. Em outras palavras. A
natureza biológica específica do homem, fruto do processo biológico da
evolução, desenvolveu os instrumentos por meio dos quais, ele é capaz de ativar
a sua capacidade racional, de articular sons numa escala inexistente entre as espécies animais e fazer valer as
exigências da Lei Moral. Mal comparando a evolução genético-biológica põem à
disposição os instrumentos que permitem ao homem executar suas sinfonias, expressar
por mil modalidades de linguagens o seu universo cultural e intercambiá-lo com
seus semelhantes, fixá-lo nas mais diversas formas de escrita, transmiti-lo às
novas gerações. Em outras palavras novamente a evolução preparou as cordas
vocais como instrumentos da fala, não porém, “o que” é para ser transmitido. Preparou o violino
mas não as melodias que o virtuose é capaz de estrair dele. O especialista em
linguagem Daniel Everett lançou um livro com significativo título: “Language a
Tool of Culture” – “A Linguagem uma Ferramenta
da Cultura”, no qual defende uma posição muito próxima para a linguagem,
daquela de Dobzhansky.
Da mesma forma como os genes determinam nossa
capacidade de falar, não o que dizemos, os princípios éticos que aceitamos não
provêm da nossa herança biológica, senão pela cultural. A evolução biológica do
homem previu a base orgânica para sua evolução cultural. Por servir como base
do progresso cultural ela não deve ser apenas preservada nos limites do
possível, senão também aperfeiçoada e valorizada. A planificação da evolução
humana, incluindo a biológica, a biologia deve ser direcionada para a
perspectiva da herança espiritual e
cultural do homem. Neste contexto inclui-se a religião, a filosofia, a arte e o
conjunto do conhecimento e experiência acumulado pela humanidade. (Dobzhnsky,
1969, p. 177)
Essas
informações de Dobzhansky somadas às muitas outras que encontramos no decorrer
dessas reflexões, subsidiam, cada uma à sua maneira, a tese de que a Natureza
constitui-se numa monumental síntese. Na perspectiva sistêmica ou organísmica de
Ludwig von Bertalanffy , na compreensão de Teilhard de Chardin e de Balduino
Rambo, o universo, a natureza e todas formas de vida nela encontráveis,
extintas ou não, são o resultado dessa síntese, formando por assim dizer um
“super-sistema”. E o próprio conceito de sistema ou organismo afirmam
implicitamente que os sub-sistemas que compõem o todo são, por sua vez e à sua
maneira, resultado de uma síntese. Edward Wilson, pesquisando formigas e outros
insetos e observando ecossistemas naturais e humanizados chegou à conclusão de que
a Natureza é um Fato objetivo”, isto é, resultado de uma síntese. Francis
Collins estudando as características do genoma humano como sendo o responsável por um surpreendente parentesco
biológico entre todas as formas de vida, desde as mais rudimentares até as mais
evoluídas, incluindo o homem, formulou o conceito de “BioLogos” para fazer entender como, a partir dos dados
da genética, resultou a síntese de que
nos estamos ocupando.
Mas
há um outro aspecto paralelo a essa linha de interpretar a natureza que, embora
controversa entre os que se ocupam com essa temática que não pode se
desprezada, apresentada por Collins e
que pode ser percebida nas entre linhas dos demais. Referimo-nos as diversas
interpretações de como a evolução preparou o caminho para possibilitar o surgimento
do homem. Foi apresentada na sua forma extrema pela teoria “antrópica”, pela
qual a natureza existe em função do homem, preparando o terreno para tal e as condições para se desenvolver biológica
e culturalmente objeto dos comentários de Collins (cf. A Linguagem de Deus, p.).
Implícita nessa maneira de interpretar o acontecer da história da vida, teve
como finalidade o homem, o que significa que foi orientado por uma teleologia.
Dobzhansky
concluiu seu livro sobre a “Hereditariedade e Natureza do Homem” com uma
reflexão que faz todo o sentido para aqueles que se preocupam com a saúde do nosso planeta, a nossa morada,
a nossa pátria, a nossa querência ou a “nossa mãe e pátria”.
A
evolução levou o homem a uma encruzilhada da qual não há escapatória e não
permite voltar atrás. Nosso passado animal ficou irremediavelmente perdido. Nem
querendo não é possível retornar a ele. Está em questão de um lado o ocaso
cultural e biológico e, do outro, uma progressiva adaptação da cultura ao
lastro hereditário dos genes e suas mutações e, do outro a cultura induzindo as
mutações nos genes. Vem aqui ao caso a metáfora de Nietzsche que imagina a
humanidade equilibrando-se sobre uma corda estendida sobre um abismo. Na primeira alternativa a humanidade
não chega na outra borda do precipício. Cai no abismo antes de a alcançar. Na
segunda o condicionamento recíproco entre os genes e a cultura, garante, apesar
dos pesares, alcançar a outra margem. Está
nas mãos do homem escolher a alternativa certa para que a travessia ocorra sem
um catástrofe definitiva e irreversível. Uma postura otimista permite acreditar
que a espécie humana não se precipite no abismo. Já que a nossa época é
caracterizada por muitos como a idade da ansiedade é preciso contrapor-lhe uma
boa dose de otimismo. Dobzhansky declara-se otimista embora a ansiedade domine
uma alta porcentagem das pessoas. Seu otimismo provem da convicção de que a
natureza e o homem são frutos da evolução e a humanidade junto com a natureza
continuarão evoluindo indefinidamente para o futuro. Olhando em nosso derredor
constatamos que existe um enorme volume de fealdades, temperadas por não menos
belezas; há muita coisa boa acontecendo, como também muito coisa abominável. O
que deve prevalecer não é o pessimismo destruidor mas o otimismo e
consequentemente a esperança criadora. O mundo não foi criado de forma estática
por uma única ação criadora, A criação não é um ato isolado mas um processo,
cujo êxito não pode ser garantido pela evolução. Entretanto, o homem tem todas
as condições de lutar para que o processo não termine num beco sem saída. Na
última frase do seu livro, Dobzhansky conclui sua reflexão: “Sem dúvida o homem
está de posse das ferramentas para assegurar êxito e essa é uma batalha que
confere significado e dignidade à vida humana individual e coletiva. Permita-me
repetir, a evolução confere esperança”. (Dobzhansky, 1969, p. 178).