Deitando Raízes #9

Poucos dias após a execução do Menino diabo, entrou um destacamento de Farrapos em Dois Irmãos. Abriram a sepultura e encontraram o malfeitor mutilado, obviamente morto. Mas antes que se pudessem vingar a bel prazer, os imperiais estavam nos seus calcanhares. Perseguiram-nos por Carioca, Sapucaia, Aldeia dos Anjos  e Passo Grande, sem contudo  alcançá-los, já que deste último lugar retiraram-se para o alto da Serra. Toda a força de combate dos imperiais, cerca de 3.000 homens, entre eles oito jovens alemães de Bom Jardim, marchou contra Viamão (Capela Grande), onde os rebeldes tinham seu acampamento principal. Os Farrapos dispunham de vários canhões, enquanto os imperiais só contavam com infantaria e cavalaria. Numa elevação, perto do Gravataí,  estava posicionada uma bateria, que deveria dificultar  a travessia e o avanço dos imperiais. Apesar disto estes últimos avançaram. Uma bala de canhão veio assobiando pelo ar e cravou-se  na lama do barranco. (19) Os atacantes pararam assustados, mas o valente oficial Gabriel Gomes gritou: "Não é nada, avancem!" O Ataque começou com destemor apesar dos muitos obstáculos. Só havia duas canoas para levar os 300 homens para ao outro lado. Apesar de tudo obtiveram-se boas vantagens e a aproximação da casa fortemente defendida, progrediu. Nessa altura ocorreu algo inusitado, provocando a ira dos alemães sob o comando do seu coronel dr. Hildeband. Bento Manoel que antes  combatera pela causa dos Farrapos e agora comandava os imperiais, fez saber que mandaria fuzilar todo aquele que molestasse os Farrapos. Estes encontravam-se numa situação difícil e praticamente sem pólvora para o canhão, razão pela qual as balas não tinha força. O velho Noschang, que na época servia sob os Farrapos, veio a ser apelidado de Moisés por causa do seu aspecto venerando, teria declarado que os canhoneiros estavam a ponto de inutilizar as peças de artilharia, se os imperiais tivessem avançado mais. Naquele dia, porém, não aconteceu nenhum ataque sério. Os imperiais foram obrigados a observar sem poder fazer nada, como os Farrapos que, apressados e em desordem como uma manada de gado selvagem, fugiam em direção a Viamão. O assalto somente deveria acontecer no dia seguinte, quando 300 baianos chegaram a Porto Alegre com três canhões.  Antes, porém, houve uma negociação entre os comandantes dos dois exércitos. Bento Gonçalves o cabeça dos revoltosos dirigiu-se  a cavalo até o acampamento de Bento Manoel, onde permaneceu até a anoitecer. O que teriam acerto os dois!? Já antes os alemães não confiavam muito no seu general Bento Manoel e o curso dos acontecimentos reforçaram as suspeitas. Ao clarear o dia os imperiais aproximaram-se da aldeia de Viamão. Primeiro dispararam um tiro cego de uma das suas peças, com a finalidade de, pela última vez, convidar o inimigo para a rendição. A resposta foi um disparo de verdade vindo do acampamento do inimigo. A mira foi tão certeira que a bala arrancou o chifre de um boi de uma das parelhas, depois quebrou alguns raios de uma roda para, finalmente, perder-se no campo. A escaramuça esquentou. A infantaria imperial avançou protegida pelos canhões. Os Farrapos posicionaram dois canhões na beira da estrada para castigar o atacantes com uma saraivada de metralha. Aqueles avançaram e, por duas vezes, estavam a ponto de se apoderar dos canhões. Dos 300 baianos sobraram apenas 50. Em vez de os imperais saírem vencedores foram batidos porque a sua cavalaria não se mexeu. Muitos, principalmente entre os alemães,  gritavam em altos brados que houve traição e, provavelmente, não sem razão. Bento Manoel desconfiou  finalmente da atitude da coluna sob o comando do coronel Hildebrand.
Para ele próprio se livrar da suspeita de traição, ordenou que entrassem em combate. Viu--se forçado a repetir a ordem uma, duas, três vezes. Inútil. Os alemães não se moveram do lugar. O velho Gerling gritou alto: "Ladrão queres vender-nos ao inimigo?" Bento Manoel ameaçou apontar os próprios canhões contra eles, caso não avançassem, mas o oficial de artilharia, um homem com um pequeno quepe, declarou sem reticências, que a coisa era muito arriscada. Bento Manoel deu meia volta com o cavalo e afastou-se a galope. Com isto a escaramuça estava terminada para aquele dia. Na manhã seguinte os alemães  retiraram-se o mais depressa possível e voltaram para as suas picadas. Bento Manoel demorou-se ainda por  alguns  dias perto de Viamão. Finalmente, porém, com o avanço dos Farrapos, retirou-se para Porto Alegre e, depois, via São Leopoldo e Portão até a Freguesia Nova (hoje Taquari ou Triunfo). Como se sabe ocorreu aí um importante combate de três dias, que resultou na derrota dos Farrapos. O troar dos canhões podia ser ouvido até na mata virgem dos alemães que agora se sentiam de fato felizes por terem finalmente conquistado a tranqüilidade em meio às perturbações políticas. (20) O desfecho da guerra é conhecido por todos. Aconteceu da mesma forma como recentemente com a Revolta do Prata e a Guerra dos Maragatos. O soldo de Bento Gonçalves e de todos os seus adeptos foi pago sobre todo o período da revolução e voltaram a apresentar-se como baluartes do trono e tidos em alto conceito. De outra parte os colonos alemães que tinham perdido tudo no conflito, puderam recomeçar.
Depois do malogrado ataque a Viamão Jakob Jung conforme expressão sua, “arrastou-se de volta para a mata virgem”. Certo dia recebeu a inesperada  visita de Farrapos dispersos. Alertado sobre a sua chegada, trancou portas e tampões e esperou que batessem mais vezes. Só quando ameaçaram arrombar a porta, levantou-se  e abriu. Eram três que pediram algo para comer. Jakob Jung, cuja mulher estava grávida, comprara uma libra  de manteiga para o dia do nascimento. Ofereceu-a aos hóspedes indesejados, enquanto se atinha ao princípio: Ao cachorro furioso oferece-se um pedaço de pão enquanto se joga um pau nas costas do manso, sem que se tenha a temer castigo. Os três  revolucionários avançaram na manteiga e cortaram grossas porções que colocaram sobre o pão. No fim da refeição a manteiga tinha sumido. Não satisfeitos levaram  calçados, couros e tudo que encontraram. Mas a experiência não estava terminada. Depois de meia hora bateram de novo na porta. Eram os três velhos conhecidos associados  a mais quatro (vindos do Faxinal em São Sebastião). Carregaram dois cavalos com couros e ouras tralhas. Quando a mulher de Jung desandou em choro, um dos bandidos mostrou o sabre e, enquanto o roçava no pescoço do marido, disse: "Se lhe cortasse o pescoço a senhora teria motivo para chorar, esteja satisfeito por escapar com vida." É verdade. Escaparam com vida mas de resto salvaram miseravelmente pouco. Os salteadores de estrada carregaram até o "Buraco do Diabo" um garrafão de vinho encontrado na vistoria da casa. Tomaram o conteúdo e despedaçaram o casco contra um tronco de árvore. Depois de mais duas semanas apareceram  oito forasteiros que levaram o resto que o casal Jung ainda tinha. Desanimados abandonaram Bom Jardim e mudaram-se para Holanda [1] onde moraram desde então bem isolados. O primeiro morador ficava uma hora distante. Em condições mais difíceis começaram a vida  pela segunda vez. A mulher disse na ocasião: "Quem sabe que, apesar de tudo, talvez vivamos dias melhores. Embora tenhamos perdido quase tudo, a vida nos foi preservada." Deve ter sido um espetáculo comovente quando os dois partiram em busca da nova querência. A mulher carregava a criança pequena num dos braços, no outro a roda de fiar e o homem levava nas costas o que sobrara em utensílios domésticos, o berço da criança e nas mãos roupa de cama  e outros pequenos objetos. Quem naquela ocasião teria adivinhado que este casal conquistaria o bem-estar do qual continuava a desfrutar ainda em 1895. Merece ser lembrado que, não poucas vezes, a jovem mulher ficava sozinha na cabana  por dois dias, protegida apenas pelos cachorros, enquanto o homem providenciava por alimentos.  E, numa determinada ocasião, quando não tinham nada para fazer fogo, colocaram pólvora e espoleta sobre o detonador da espingarda de pederneira e, soprando as fagulhas, obtiveram fogo.
Só mais tarde me foram relatados, por fonte confiável, detalhes interessantes sobre o assassinato de Fritz Renner, pai de Philipp, Fritz Renner era fugitivo dos Farrapos que tinham seu acampamento no "Buraco do Diabo". A mulher quis levar-lhe um cobertor para a noite. Foi aprisionado e arrastado por um trecho pela estrada. Mais tarde o cadáver foi localizado perto da cascata, degolado e sem sinais de bala. Um mecklenburguense de nome Bollmann (21) o teria golpeado várias vezes com o sabre. Todos as tentativas de limpar o sangue da lâmina teriam sido em vão. É ao menos isto que se afirmava.
Johann Nedel, irmão de Joseph Nedel perdeu a vida de uma forma sumamente lamentável. O capitão farrapo Ohnmacht invadiu a picada com 300 homens de infantaria e 100 de cavalaria, enquanto os imperiais se retiraram sob o comando de Totsch. Johann Nedel e Peter Schneider ficaram para trás e foram alcançados pelos Farrapos, quando se preparavam para atravessar o rio feitoria. O capitão entrou com o cavalo na água, agarrou o infeliz e degolou-o. Afirma-se que os estertores foram  ouvidos de longe. Quando mais tarde os imperiais o sepultaram, o corpo já depositado na sepultura, um dos coveiros comoveu-se porque a terra cairia diretamente sobre o corte aberto. Tirou o lenço, amarrou-o no pescoço do morto e só depois o cobriram com terra. Um ato de delicadeza que merece registro num período tão sanguinário.
Com o assassinato do bondoso Peter Ludwig e três dos que o acompanhavam no início de agosto de 1841, uma luz toda peculiar projeta-se sobre a opinião daqueles que, sem uma razão plena, afirmam com Adalbert Jahn, que os católicos estavam do lado dos Farrapos. O assassino foi o capitão Carlos, um português de nascimento, partidário dos Farrapos, motivado por uma razão  banal. Acontece que, certa ocasião o colono em questão, foi à procura do gado que sumira sem explicação, em companhia de outros  companheiros. É óbvio que os Farrapos  tinham-se apossado dos animais e  alimentaram-se em companhia  dos partidários, alemães renegados, cujos nomes preferimos não registrar aqui.  O simples procurar já era suficiente para que os Farrapos  tirassem eliminassem alguém. O episódio aconteceu assim. Peter Ludwig que morava na terra onde hoje se encontra a capela dos 14 Santos das causas impossíveis, tocava um pequeno negócio. Navegava com seu barco no rio Cadeia, entre Campestre e as 14 Colônias, inicialmente até Caí e mais tarde até Porto Alegre. Era o único serviço de navegação de que Bom Jardim dispunha e, mesmo assim, apenas partindo dos seus limites, até as 14 Colônias. Com Peter Ludwig, dono do alambique, encontravam-se Jacob Ludwig da Picada dos Portugueses e  três homens que o acompanhavam, um da picada e outros dois jovens da Linha Nova. O primeiro, como que pressentindo o desastre,  foi  ter com Peter Ludwig na noite anterior à partida, comunicando que pretendia desistir, mas movido pela insistência voltou atrás. A viagem até Porto Alegre transcorreu sem problemas, da mesma forma como a viagem de volta até o local onde o Feitoria se encontra com o Cadeia. Nesse local sumiram as quatro embarcações  e, aparentemente, ninguém soube  de nada. Somente depois da chegada do Pe. Agostinho e 1849 e de alguns sermões muito sérios, acordou a consciência de alguns que sabiam dos fatos. Mostraram para as famílias onde os corpos podiam ser localizados. De fato foram encontrados no local indicado, mas incompletos e os restos mortais espalhados, porque as covas não tiveram mais do que dois palmos de profundidade. Os ossos forma colocados numa urna e sepultados pelo Pe. Agostinho.
Um outro exemplo de boas relações entre os Farrapos e os católicos, fica evidente pelos relatos de famílias católicas da picada. Muitas vezes os Farrapos andavam  precariamente vestidos. Um vestia uma camisa, o outro não, o outro uma peça com duas mangas o outro uma com apenas uma. A situação das calças e casacos não era diferente. O que mais interessava eram ponchos que os protegiam da chuva e do frio. Na maioria dos casos restava para os pobres colonos uma outra dessas peças de roupa, com as quais cobriam as crianças no inverno. Sua preocupação principal era esconder (22) os ponchos dos Farrapos, que bisbilhotavam por tudo. Certo dia  acabavam de procurar ponchos nas casas, nos paióis e nas  estrebarias, quando na casa de um certo Feltes encontraram dois ponchos escondidos no meio do milho. Voltaram imediatamente até as casas dos colonos antes vasculhadas, para procurar em vão a preciosa presa no meio do milho. Nem todos haviam escolhido o mesmo esconderijo, mas o local que pessoalmente parecia o mais seguro para esconder a útil peça. O resultado foi que a vistoria terminou em muitas decepções.
Um outro episódio da época envolveu os irmãos Schmitt e um homem de nome Kohlrausch, três cidadãos de Hamburgo Velho,  vendeiros bem sucedidos. Não residiam em Bom Jardim, mas eram bem conhecidos  pelos moradores de lá.   Dizia-se deles que, como recrutadores e intermediários tinha reunido uma boa soma de dinheiro. Por duas vezes os Farrapos queimaram suas casas de comércio e, por fim, foram feitos prisioneiros, levados a Piratini onde foram obrigados a semear cereais e por fim libertados.
Um outro personagem menos relacionado com Bom Jardim - somente com Catarina Calsinger - foi Mathias Brusch que tinha uma perna de pau. Foi levado para a cadeia porque não  confiavam nele. Nunca foi apanhado porque ninguém desconfiou que levava a perigosa correspondência escondida na perna de pau, como de fato foi.




[1] Picadda Holanda situa-se entre o Morro Reuter e a Picada Café.

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