O Conhecimento como Síntese 10ª parte

A dupla face da Ciência e Tecnologia


A absoluta  maioria são de uma inegável utilidade direta ou indireta. Atuam de fato como motores do progresso no sentido mais completo do termo. E como os resultados do progresso vem a ser uma moeda de dupla face, isto é, o bem estar do homem de um lado e a ameaça da sua ruína, do outro, nos laboratórios são desenvolvidos conhecimentos e instrumentos que podem tanto servir a uma quanto a outra finalidade. Dessa forma o avanço das pesquisas  potencializa tanto a cara quanto a coroa que resultam do progresso. Algumas dessas conquistas, como a penetração na estrutura atômica, seu funcionamento, seu potencial energético de aplicação prática, tanto para fins pacíficos quanto para bélicos, tanto para promover o bem estar do homem, quanto para a sua ruína, são exemplares. É um caso emblemático  de como a Ciência Natural  termina avançando sobre as fronteiras das Ciências  do Espírito. As conquistas empíricas terminam mexendo com a Ética e a Moral. Mas não é nosso objetivo entrar mais a fundo nessa discussão, pelo menos de momento. Queremos alertar apenas que o conceito de progresso implica, de um lado na melhora das condições,  do outro pode levar à ruína da humanidade. Como a destinação das conquistas científicas dependem de uma opção humana, elas necessariamente implicam numa decisão  ética. A Ciência deixa de ser objetiva, fáctica, inócua ou neutra, para municiar decisões que têm como fundo, motivações de outra natureza.

Depois de chamar a atenção para dupla face do progresso turbinado pelas conquistas científicas, quero demorar-me um pouco mais no lado da sombra, apontado por Teilhard de Chardin, depois de falar do “instrumento maravilhoso” que é a pesquisa científica que parte da análise ou da desconstrução de sínteses. Se a destinação prática  dos resultados das pesquisas implica em questões como a ética, o cenário histórico global que resultou não é menos  paradoxal. O paradoxo faz parte da própria natureza  do método analítico. Para avançar no conhecimento científico é forçoso desdobrar as realidades em componentes estruturais e funcionais. Quanto mais se avança mais se disseca, desmonta, desdobra. O risco está exatamente no desmonte progressivo que a análise estimula e exige. Chega-se  a um ponto em que, diante de pilhas de engrenagens, circuitos, peças, átomos, moléculas, tecidos, não se percebe mais o todo, o conjunto que integravam como partes funcionais. Avança-se e aprofunda-se enquanto aparecerem resultados e enquanto ainda houver esperança de surpresas. Não são poucos os pesquisadores que se flagram perplexos diante da “pilha de peças” da máquina que desmontaram e das “partículas que se esvaem” e perguntam: E o sentido de tudo isso? Toma conta deles a sensação de terem participado de um “parto de montanha”,  como diriam os romanos na sua lendária sabedoria.

Problema dos cientistas e da ciência pode objetar alguém. Nem tanto. Na medida em que durante os últimos séculos as pesquisas se diversificaram; na medida em que os especialistas se multiplicaram; na medida em que os resultados das investigações aceleraram o progresso da humanidade, conceitos, princípios, valores e dogmas tradicionais intocáveis, foram sendo contestados, discutidos, minados pela base, postos em dúvida e, finalmente, arquivados nos museus da história. Um a um velhos paradigmas e referências foram desconstruídos. A. S. Caldera  afirma; “A pós-modernidade é a desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas”. Para depois concluir: “O protótipo do homem dominante é o do bárbaro digital”. (M.M.M. Caldlera, p. 91).

Neste cenário desenham-se alguns riscos que precisam ser enfrentados se não quisermos cair na vala comum das suas vitimas. O autor que acabamos de citar, os enumera: “Há que evitar três  riscos para preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e todo o valor por um indefinido processo de construção e a defesa da identidade e da diferença própria, negando a  identidade e a diferença alheias”. ( ... ) “Ou evitando que a pluralidade de culturas se transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e agressivos”. (M.M.M. Caldera, p. 93.

Mas não só a nível de filósofos e cientistas, a quem afeta toda essa problemática  diretamente,  fazem-se ouvir advertências de peso. Nos intervalos em que redigia esse texto li o ensaio da escritora Lya Luft, publicado na revista Veja, edição 2204, de 16 de fevereiro de 2011. Vale a pena reproduzir o começo desse ensaio intitulado: A maior ironia:

Com o ensino cada vez pior – e ainda por cima sendo cada vez mais difícil conseguir uma reprovação -, temos gente saindo das universidades quase sem saber coordenar pensamentos e expressá-los por escrito, ou melhor, sem saber o que pensar das coisas, desinformados e desinteressados de tudo. Fico imaginando como será em algumas décadas. A ignorância alastrando-se pelas casas, escolas, universidades, escritórios, congressos, senados ... Multidões consumistas  ululando nas portas de gigantescos shopings, paises inteiros saindo da obscuridade -  não pela democracia, mas para participar da orgia de aquisições e entrar na modernidade. Em algumas coisas sou pessimista: essa é uma delas. Mas acredito que os que ainda quiserem pensar, estudar, descobrir, inventar, pintar, dançar, cantar e escrever, vão viver numa espécie de ilha. Talvez em universidades tradicionais ou  ultra-adiantadas, ou no aconchego  de bibliotecas em casa ( ... ) Já existem em países adiantados intelectuais, pensadores, pesquisadores, cientistas pagos, simplesmente para pensar, criar, inventar, descobrir. (Veja, ed. 2204, nº 7, 2011, p. 22)

A escritora Lya Luft apontou no ensaio ao que acabamos  de nos referir,  para alguns pontos de grande valia para a nossa reflexão. O primeiro tem relação íntima com a “desconstrução dos paradigmas, abolição  dos valores sociais, políticos e econômicos, éticos,  religiosos e morais”, sobre os quais  nos alerta Alexandro S. Caldera. A escritora  aponta com  o dedo o rosto visível  desse pano de fundo. Estigmatiza os efeitos concretos e práticos causados pela fragmentação que se alastra por todos os setores e níveis da sociedade pós-moderna. Recuperando-se, por assim dizer, do susto que o cenário lhe causou, encontra razões para vislumbrar uma luz no fundo do túnel. A existência de pensadores, cientistas, artistas, teólogos entregues, antes de qualquer outro interesse, a aprofundar as reflexões, penetrar sempre mais fundo nos objetos de suas investigações. Acumulando saberes e agregando-lhes qualidade e abrindo o leque de significados, preparam a matéria prima, para com ela, como ponto de partida, construir um pensamento  que mereça esse nome.

Acontece que não é com vozes de alerta isoladas ou a advertência de “franco atiradores” que se aconselha partir para uma cruzada em busca da reversão desse quadro. Dois pressupostos são fundamentais. Ambos igualmente determinantes. O primeiro é aquele ao qual nos referimos mais acima. Exigem-se instituições de ensino em todos os graus e níveis, nas quais os estudantes encontrem condições para municiarem-se dos conhecimentos e das ferramentas, que os habilitam a lidar com a complexidade do mundo  no qual irão atuar. Somente assim estarão em condições de compreender que, cada qual como indivíduo, representa uma gota no grande oceano da construção do conhecimento; que com outros trilhões de gotas forma um grande conjunto; que por insignificante que possa parecer o conhecimento individual, ele melhora ou piora a qualidade do todo. É fundamental que a formação dos estudantes, não importa o caminho específico e individual que cada um escolher, tenha essa consciência. Superam-se com isso dois impasses. Em primeiro lugar, entram em cena pesquisadores e ou pensadores cônscios de que lhes compete explorar campos e objetos limitados, partes de uma realidade maior. Os saberes que vão reunindo são parcelas que têm valor na medida em que contribuem para a construção do conhecimento que engloba todos os saberes individuais integrados harmonicamente. Nisso consiste a sua riqueza, vigor e solidez.  Em segundo lugar, e como conseqüência lógica da anterior, a aceitação e o respeito pelos que os outros pesquisam e pensam, pelos esforços dos estudiosos dos que se dedicam a outros objetos ou os abordam a partir de perspectivas diferentes. O respeito e a aceitação levam à valorização dos esforços dos outros e suas conclusões, não só das Ciências Naturais ou das Ciências do Espírito como, e porque não, da  sabedoria popular. Num cenário desses obviamente só há espaço para espíritos desarmados, honestos, despidos de preconceitos, imunes a ideologias, humildes, conscientes do seu papel em contribuir para o avanço dos conhecimentos e, ao mesmo tempo, cônscios das suas limitações. Não há, portanto, espaço para arrogantes, donos da verdade, pregadores de dogmas tanto científicos quanto filosóficos ou teológicos de perfil fundamentalista.


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