A dupla face da Ciência e
Tecnologia
A
absoluta maioria são de uma inegável
utilidade direta ou indireta. Atuam de fato como motores do progresso no
sentido mais completo do termo. E como os resultados do progresso vem a ser uma
moeda de dupla face, isto é, o bem estar do homem de um lado e a ameaça da sua
ruína, do outro, nos laboratórios são desenvolvidos conhecimentos e
instrumentos que podem tanto servir a uma quanto a outra finalidade. Dessa
forma o avanço das pesquisas
potencializa tanto a cara quanto a coroa que resultam do progresso.
Algumas dessas conquistas, como a penetração na estrutura atômica, seu
funcionamento, seu potencial energético de aplicação prática, tanto para fins
pacíficos quanto para bélicos, tanto para promover o bem estar do homem, quanto
para a sua ruína, são exemplares. É um caso emblemático de como a Ciência Natural termina avançando sobre as fronteiras das
Ciências do Espírito. As conquistas empíricas
terminam mexendo com a Ética e a Moral. Mas não é nosso objetivo entrar mais a
fundo nessa discussão, pelo menos de momento. Queremos alertar apenas que o
conceito de progresso implica, de um lado na melhora das condições, do outro pode levar à ruína da humanidade.
Como a destinação das conquistas científicas dependem de uma opção humana, elas
necessariamente implicam numa decisão
ética. A Ciência deixa de ser objetiva, fáctica, inócua ou neutra, para
municiar decisões que têm como fundo, motivações de outra natureza.
Depois
de chamar a atenção para dupla face do progresso turbinado pelas conquistas
científicas, quero demorar-me um pouco mais no lado da sombra, apontado por
Teilhard de Chardin, depois de falar do “instrumento maravilhoso” que é a
pesquisa científica que parte da análise ou da desconstrução de sínteses. Se a
destinação prática dos resultados das
pesquisas implica em questões como a ética, o cenário histórico global que
resultou não é menos paradoxal. O
paradoxo faz parte da própria natureza
do método analítico. Para avançar no conhecimento científico é forçoso
desdobrar as realidades em componentes estruturais e funcionais. Quanto mais se
avança mais se disseca, desmonta, desdobra. O risco está exatamente no desmonte
progressivo que a análise estimula e exige. Chega-se a um ponto em que, diante de pilhas de
engrenagens, circuitos, peças, átomos, moléculas, tecidos, não se percebe mais
o todo, o conjunto que integravam como partes funcionais. Avança-se e
aprofunda-se enquanto aparecerem resultados e enquanto ainda houver esperança
de surpresas. Não são poucos os pesquisadores que se flagram perplexos diante
da “pilha de peças” da máquina que desmontaram e das “partículas que se esvaem”
e perguntam: E o sentido de tudo isso? Toma conta deles a sensação de terem
participado de um “parto de montanha”,
como diriam os romanos na sua lendária sabedoria.
Problema
dos cientistas e da ciência pode objetar alguém. Nem tanto. Na medida em que
durante os últimos séculos as pesquisas se diversificaram; na medida em que os
especialistas se multiplicaram; na medida em que os resultados das
investigações aceleraram o progresso da humanidade, conceitos, princípios,
valores e dogmas tradicionais intocáveis, foram sendo contestados, discutidos,
minados pela base, postos em dúvida e, finalmente, arquivados nos museus da
história. Um a um velhos paradigmas e referências foram desconstruídos. A. S.
Caldera afirma; “A pós-modernidade é a
desvalorização do futuro, a queda das utopias e o cancelamento das certezas”.
Para depois concluir: “O protótipo do homem dominante é o do bárbaro digital”.
(M.M.M. Caldlera, p. 91).
Neste
cenário desenham-se alguns riscos que precisam ser enfrentados se não quisermos
cair na vala comum das suas vitimas. O autor que acabamos de citar, os enumera:
“Há que evitar três riscos para
preservar o indubitável valor democratizador das diferenças: o afiançamento do
etnocentrismo axiológico, a pulverização da ética e todo o valor por um
indefinido processo de construção e a defesa da identidade e da diferença
própria, negando a identidade e a
diferença alheias”. ( ... ) “Ou evitando que a pluralidade de culturas se
transforme na multiplicação de núcleos impermeáveis, intolerantes e
agressivos”. (M.M.M. Caldera, p. 93.
Mas
não só a nível de filósofos e cientistas, a quem afeta toda essa
problemática diretamente, fazem-se ouvir advertências de peso. Nos
intervalos em que redigia esse texto li o ensaio da escritora Lya Luft,
publicado na revista Veja, edição 2204, de 16 de fevereiro de 2011. Vale a pena
reproduzir o começo desse ensaio intitulado: A maior ironia:
Com o ensino cada vez pior – e ainda por
cima sendo cada vez mais difícil conseguir uma reprovação -, temos gente saindo
das universidades quase sem saber coordenar pensamentos e expressá-los por
escrito, ou melhor, sem saber o que pensar das coisas, desinformados e
desinteressados de tudo. Fico imaginando como será em algumas décadas. A
ignorância alastrando-se pelas casas, escolas, universidades, escritórios,
congressos, senados ... Multidões consumistas
ululando nas portas de gigantescos shopings, paises inteiros saindo da
obscuridade - não pela democracia, mas
para participar da orgia de aquisições e entrar na modernidade. Em algumas
coisas sou pessimista: essa é uma delas. Mas acredito que os que ainda quiserem
pensar, estudar, descobrir, inventar, pintar, dançar, cantar e escrever, vão
viver numa espécie de ilha. Talvez em universidades tradicionais ou ultra-adiantadas, ou no aconchego de bibliotecas em casa ( ... ) Já existem em
países adiantados intelectuais, pensadores, pesquisadores, cientistas pagos,
simplesmente para pensar, criar, inventar, descobrir. (Veja, ed. 2204, nº 7,
2011, p. 22)
A
escritora Lya Luft apontou no ensaio ao que acabamos de nos referir, para alguns pontos de grande valia para a
nossa reflexão. O primeiro tem relação íntima com a “desconstrução dos
paradigmas, abolição dos valores
sociais, políticos e econômicos, éticos,
religiosos e morais”, sobre os quais
nos alerta Alexandro S. Caldera. A escritora aponta com
o dedo o rosto visível desse pano
de fundo. Estigmatiza os efeitos concretos e práticos causados pela
fragmentação que se alastra por todos os setores e níveis da sociedade
pós-moderna. Recuperando-se, por assim dizer, do susto que o cenário lhe
causou, encontra razões para vislumbrar uma luz no fundo do túnel. A existência
de pensadores, cientistas, artistas, teólogos entregues, antes de qualquer
outro interesse, a aprofundar as reflexões, penetrar sempre mais fundo nos
objetos de suas investigações. Acumulando saberes e agregando-lhes qualidade e
abrindo o leque de significados, preparam a matéria prima, para com ela, como
ponto de partida, construir um pensamento
que mereça esse nome.
Acontece
que não é com vozes de alerta isoladas ou a advertência de “franco atiradores”
que se aconselha partir para uma cruzada em busca da reversão desse quadro.
Dois pressupostos são fundamentais. Ambos igualmente determinantes. O primeiro
é aquele ao qual nos referimos mais acima. Exigem-se instituições de ensino em
todos os graus e níveis, nas quais os estudantes encontrem condições para
municiarem-se dos conhecimentos e das ferramentas, que os habilitam a lidar com
a complexidade do mundo no qual irão
atuar. Somente assim estarão em condições de compreender que, cada qual como
indivíduo, representa uma gota no grande oceano da construção do conhecimento;
que com outros trilhões de gotas forma um grande conjunto; que por
insignificante que possa parecer o conhecimento individual, ele melhora ou
piora a qualidade do todo. É fundamental que a formação dos estudantes, não
importa o caminho específico e individual que cada um escolher, tenha essa
consciência. Superam-se com isso dois impasses. Em primeiro lugar, entram em
cena pesquisadores e ou pensadores cônscios de que lhes compete explorar campos
e objetos limitados, partes de uma realidade maior. Os saberes que vão reunindo
são parcelas que têm valor na medida em que contribuem para a construção do
conhecimento que engloba todos os saberes individuais integrados
harmonicamente. Nisso consiste a sua riqueza, vigor e solidez. Em segundo lugar, e como conseqüência lógica
da anterior, a aceitação e o respeito pelos que os outros pesquisam e pensam,
pelos esforços dos estudiosos dos que se dedicam a outros objetos ou os abordam
a partir de perspectivas diferentes. O respeito e a aceitação levam à valorização
dos esforços dos outros e suas conclusões, não só das Ciências Naturais ou das
Ciências do Espírito como, e porque não, da
sabedoria popular. Num cenário desses obviamente só há espaço para
espíritos desarmados, honestos, despidos de preconceitos, imunes a ideologias, humildes,
conscientes do seu papel em contribuir para o avanço dos conhecimentos e, ao
mesmo tempo, cônscios das suas limitações. Não há, portanto, espaço para
arrogantes, donos da verdade, pregadores de dogmas tanto científicos quanto filosóficos
ou teológicos de perfil fundamentalista.