A
reflexão aprece suficientemente amadurecida para avançar mais um passo e
formular a pergunta: Qual então o caminho a ser
enveredado pelas instituições das futuras gerações de especialistas e
pensadores, para que o conhecimento que irão construir, seja de fato o
resultado da síntese de muitos saberes parciais ou setoriais? Em outras
palavras. Qual o fundamento epistemológico que oferece potencial suficiente
para realizar essa síntese? De tudo que foi apontado durante as reflexões que
vimos fazendo, a resposta parece óbvia: a Interdisciplinariedade
.A correta compreensão da Interdisciplinariedade pede alguns esclarecimentos
preliminares.
Primeiro.
Síntese do conhecimento não significa a sua redução a um nível, por exemplo, o
“científico”, como o propõe o Positivismo. Nem tão pouco a síntese do
conhecimento se realiza no plano da Filosofia ou da Teologia. Os múltiplos
conhecimentos particulares ou setoriais, são qualitativamente diferentes entre
si. Os conhecimentos das realidades naturais, históricas, sociais,
psicológicas, políticas, econômicas, etc. são legitimados a partir de
fundamentos epistemológicos próprios, ditados pela natureza do objeto de que se
ocupam. Sendo assim, forçar uma síntese a um único nível, violenta a natureza
das coisas e leva a uma compreensão equivocada da realidade global.
Segundo.
As diferenças qualitativas próprias de cada objeto de investigação particular,
por sua vez, aponta para dois aspectos
que precisam ser tomados em consideração. Em primeiro lugar, não se pode
esquecer que cada objeto como, por ex, o clima, a história de um povo, o
equilíbrio ambiental, a criminalidade, vale-se de instrumentos próprios de
aproximação. Significa que cada um pede uma abordagem e compreensão até certo ponto, sem recorrer a conhecimentos
oriundos de outra fonte. Essa relativa autonomia significa, de outra parte que
para chegar à Filosofia não se tenha que partir necessariamente da Ciência, ou
à Teologia a partir da Filosofia. Dito de outra maneira. O filósofo não precisa ser cientista, nem o
teólogo também filósofo, nem o historiador geógrafo e lingüista, o que não
significa que não seja de uma enorme utilidade, o trânsito em campos
completares daquele que concentra os esforços do investigador. Em segundo,
lugar não se pode esquecer que a “descontinuidade” qualitativa dos objetos
particulares de investigação encontra seus limites, quando se parte em busca da
síntese global do Conhecimento. Embora como resumiu o Pe. Borrero,
( ... ) a descontinuidade implique na
autonomia das disciplinas particulares, porque cada uma e cada setor de
disciplinas se constroem sobre suas próprias bases. ( ... ) A autonomia
relativa, contudo, não impede relações e interdependências. Por exemplo. A
Filosofia dá muito a pensar ao cientista e vice-versa. Os conhecimentos se complementam, corrigem e
se controlam mutuamente. Desta maneira se realiza uma urdidura, uma articulação
interdisciplinar complexa e dinâmica, no processo da construção do
conhecimento. (Cf. Borrero. ASCUN. 1992, nº 20, p. 7)
Resulta
assim uma relação de interdependência e não de dependência, nem de
independência. Não se fala em
dependência pois, nesse caso criaríamos uma situação de subordinação. É óbvio
na caso em que, por ex., uma disciplina depender de outra, a condicionante
ocupa um lugar mais acima na escala de importância, do que a condicionada. Uma
situação de dependência configura-se quando os conhecimentos de matemática
condicionam os cálculos de estruturas,
os conhecimentos de química, são pressupostos para as pesquisas celular. Dito
de outra maneira. Não se fazem cálculos estruturais sem conhecimentos mínimos
de matemática, nem se realizam análises do comportamento bioquímico do DNA, sem
dominar a natureza do processos da química orgânica. Na relação de dependência
de áreas de conhecimento, estabelece-se, portanto, uma situação em que há um
conhecimento condicionante e outro condicionado. A pesquisa de um objeto condicionado
só tem chances de dar resultados quando o investigador vem munido com os
conhecimentos prévios na área dosaber
condicionante. Os exemplos que acabamos de citar parecem não deixar dúvidas.
Não cabe como exemplo a relação que se
estabelece entre a Filosofia e a Ciência, entre a Teologia e a Filosofia. Não se pressupõem conhecimentos
filosóficos para realizar pesquisas científicas e vice-versa. A relação que
nesse caso se configura é de interdependência e de complementariedade, não de
dependência ou de condicionamento. Em outras palavras. A Filosofia tem muito a
lucrar se tomar em consideração os resultados das pesquisas científicas. Da
mesma forma os dados científicos observados
e ou interpretados à luz da Filosofia ou da Teologia, só podem ser enriquecidos
nos seus significados. Nos ambientes em que se pratica esse diálogo
interdisciplinar como rotina ou base metodológica para a produção do
conhecimento, os saberes e conhecimentos setoriais “complementam-se,
corrigem-se e controlam-se mutuamente. Resulta daí uma articulação
interdisciplinar complexa, dinâmica em todas as fases e níveis da construção do
Conhecimento. Cf. Borrero. ASCUN. 1992, nº 20).
Em
resumo pode-se afirmar que, em se tratando de uma situação de dependência, uma
disciplina ou área de conhecimento ocupa a posição de “conditio sine qua non”,
já que o condicionado só prospera em função do condicionante. Ou ainda. A
dependência e a subordinação definem a natureza da relação.
Demoremo-nos
um pouco mais na situação da interdependência e complementariedade, o que pode
ser denominado também de independência relativa. A independência diz respeito
tanto ao objeto quanto à base teórico-metodológica, com que é tratado. A
relatividade dessa independência ou autonomia de resultados, no que diz
respeito à sua interpretação e não em último lugar, repercute concreta e
praticamente na vida dos indivíduos, na sociedade, no meio ambiente, na
formação da cosmovisão.
A
interdependência da qual nos vimos ocupando, não é linear e uniforme. Assume
grau e importância condicionada por cada situação concreta, cada momento
histórico e a natureza das realidades interdependentes. Um exemplo ilustrativo oferece o estudo da História na
sua relação mútua com a Geografia. Pela sua própria natureza o homem tem as raízes fincadas no seu entorno
geográfico. Este garante-lhe a sobrevivência, o progresso e a prosperidade,
pondo à disposição os alimentos e os abrigos indispensáveis para viver e
sobreviver. O entorno geográfico oferece também estímulos, símbolos e inspirações,
indispensáveis para dar forma, vida e colorido ao imaginário, esse mundo
complexo que é povoado com seres e personagens os mais inusitados. Ao arranjo e disposição das estrelas e as
constelações que formam, desde a remota pré-história foi atribuindo
personalidades e significados, consolidando a Astrologia e elaborando
horóscopos, que ainda hoje não podem reclamar de falta de público e
popularidade. Da mesma forma uma fatia
mais do que importante da História, teve o seu perfil moldado pelos elementos
do meio em que o homem buscou e encontrou os alimentos. A história dos povos
agricultores desde o neolítico, não tem como ser escrita, com um mínimo de
objetividade, sem tomar em consideração, as peculiaridades geográficas que
serviram de cenário. O tipo e a forma da posse e uso da terra, tem muito mais a
ver com as características topográficas e ou climatológicas, do que muitos
enxergam ou gostariam de aceitar. Historicamente falando quando e,
principalmente, em que circunstâncias, surgiu o modelo de uso coletivo das
terras produtivas? Ele se impôs em áreas de terras nas quais, por ex., foi
preciso recorrer à irrigação. Acontece que um sistema regional de irrigação,
como no vale do Nilo, exige uma complexa e vasta rede de canais. Essa pela própria natureza
implica num comprometimento coletivo. Para começo de conversa num projeto de
irrigação naquele tempo e, dispondo dos recursos técnicos de então, nada podia
ser feito sem um engajamento coletivo. A lógica do processo levou à valorização
da terra e da água como um bem de todos. Todo aquele que estivesse comprometido
com o progresso comum, tinha direito ao uso-fruto da terra e da água, mas não à
posse, não à propriedade da terra. Assim não havia nem espaço nem condições de
alguém cercar uma área, trancar as porteiras com cadeados, receber a flechada
os intrusos e declarar-se dono de direito sem permitir qualquer interferência.
O que pretendemos mostrar com esse exemplo é que no desenho do perfil
histórico, o modelo de organização social, econômica, política e religiosa, tem
tudo a ver com os condicionamentos físico-geográficos. Mais. O corpo de valores
que conferem alma ao convívio humano organizado, traem nas suas cores, formas e
significados uma inconfundível influência do meio.
Uma
situação análoga no seu nascedouro, mas com desfecho oposto, aconteceu na
consolidação da propriedade particular da terra ou a posse, o uso e o fruto da
terra como meio de produção.
Não
é intenção aqui aprofundar essa
discussão. O propósito consiste em mostrar que
fazer história sem tomar em conta o chão, o cenário, o palco sobre o
qual aconteceu e ainda acontece, leva a equívocos de interpretação muito
sérios. Eis uma prova de que interpretar
corretamente na sua complexidade, no presente caso, um fato histórico, requer
conhecimentos complementares. Mais exatamente. É preciso partir de uma base
teórico-metodológica interdisciplinar. Não significa que se pretende explicar,
por exemplo, um fato histórico com as peculiaridades geográficas nas quais
aconteceu. A compreensão da História como uma ciência epistemológica e
metodologicamente de natureza própria, beneficia-se em muito, na sua forma e na
riqueza dos significados, quando estudada à luz da geografia, também uma
ciência com identidade e autonomia epistemológica, metodológica e conceitual
própria. Da mesma forma e, continuando com o exemplo da História, esta vai
buscar em outras áreas complementares, como a Etnografia, a Etnologia, a
Antropologia, a Arqueologia, a Lingüística, a Filosofia ... a explicação para
os caminhos, desvios e atalhos singulares, verificados em períodos e situações
particulares. O que vale para a História aplica-se em termos a toda e
qualquer outra área de conhecimento.
Conhecimento por Intuição e
Criatividade
Até
aqui vínhamos fazendo considerações sobre os métodos sintético-dedutivo e
analítico-indutivo, tão populares quando se fala em construção do conhecimento.
Constatamos também que esses dois métodos, melhor quem sabe, duas vias que
levam ao conhecimento, desde a Renascença, gozam da flagrante preferência
dos cientistas de um lado e dos
filósofos do outro. O sintético-dedutivo é uma herança que vem consolidada
desde a Idade Media. Impôs-se como o instrumento metodológico mais conhecido e
popular quando o assunto era produzir conhecimento. Relegou para um lugar
secundário o Platonismo e seus adeptos. Depois que Tomás de Aquino e demais
pensadores e intelectuais da sua linha, digamos assim, tiraram o pó da obra do
Estagirita e a “cristianizaram”, ele veio a ser a estrada real sobre a qual se
movimentava o conhecimento, até o advento das Ciências Naturais. Platão e o
Platonismo movimentavam-se à margem do caudal principal. A concepção
sintética-dedutiva-lógica de Aristóteles, ditava a moda para organizar o
universo do conhecimento. Sem dúvida esse caminho percorrido com o auxilio de
um aparato teórico-metodológico que deixava a sensação de muita segurança, levava
uma evidente vantagem sobre o Platonismo. Neste o componente “intuição”,
garantia de um lado liberdade muito maior do que a fria lógica aristotélica. Do
outro, entretanto, suas demonstrações e conclusões, ressentiam-se da certeza,
por assim dizer matemática, “do preto sobre o branco”, da racionalidade da
lógica.
A
hegemonia do conhecimento produzido a partir da abordagem sintético-dedutiva
começou a ser disputada na medida em que as Ciências Naturais se consolidavam,
como fonte de conhecimento. Até então o que se sabia sobre a natureza em todos
os sentidos, fora obtido pela via sintético-dedutiva. O mundo natural, a
geografia, a botânica, a zoologia, eram
vistas e pensadas como objetos da Filosofia e ou da Teologia. Não demorou,
porém, o crescente interesse pelos realidades, fatos e fenômenos naturais.
Constatou-se que se tratava de um conhecimento de natureza essencialmente
diferente do universo da especulação
filosófica, o que levou à busca de um caminho próprio para o estudo da
natureza. Dito de outra forma. Buscou-se o método adequado, pois, as
explicações à base de categorias especulativas, vistas a partir de uma
perspectiva sintético-dedutiva, já não
satisfaziam. As evidências reveladas pela observação empírica imediata, deixava
evidente as limitações do método tradicional.
Não
demorou para impor-se a convicção de que no campo das Ciências Naturais, era
forçoso inverter a direção na qual deveria ser conduzida a investigação. Em vez
de começar partindo do todo para
explicar as partes, da síntese, via dedução, deveria começar-se explicando as
partes para, pela via analítico-indutiva chegar ao todo. Estavam assim
definidas as bases teórico-metodológicas que polarizaram no último meio milênio
a construção do conhecimento no campo das Ciências do Espírito, das Ciências
Naturais e das Ciências Humanas. A Francis Bacon cabe o mérito da formulação
teórica das bases da produção do
conhecimento em Método Sintético-Dedutivo e Analítico- Indutivo.
Mas
por mais abrangentes, compreensivos e conclusivos que fossem esses métodos,
eles deixaram à margem a Intuição
como via legítima de chegar ao conhecimento. Essa via e o conhecimento que dela
resulta, são vistos com desconfiança tanto pelo racionalismo filosófico quanto
pelo racionalismo científico. Costuma-se afirmar que a esse tipo de conhecimento
falta a legitimidade dos dados empíricos das Ciências Naturais assim como da
lógica racional retilínea e sem brechas
para a contestação. Nas últimas décadas a via intuitiva para a construção do
conhecimento, vem conquistando adeptos e espaço. O curioso é que a iniciativa
não parte nem do lado da Filosofia, nem tão pouco das Ciências Naturais. Essa
preciosa e oportuna redescoberta da intuição como método de produzir
conhecimento vem da sua utilidade pedagógica no processo da aprendizagem. O Pe.
Alfonso Borrero chama a atenção para essa singularidade.
Especialíssima importância se dá na
Pedagogia moderna ao exercício da criatividade, que não supõe a indução e a
dedução lógicas a partir de elementos conhecidos, mas que tem como base
principal a intuição, um salto da mente humana ao encontro de algo, partindo de
elementos prévios e, por assim dizer, cria algo novo, que mais adiante é
passível de aprimoramento posterior e procedimentos racionais, utilizando o
raciocínio metodológico da indução e da dedução.
Por isso, no exercício da criatividade que
se vale da intuição da mente, não se
deixam de todo de lado, os métodos que conferem rigor ao pensamento
racional. Adestram-se, isso sim, estratagemas novos, úteis para movimentar-se nas fronteiras do saber adquirido, passando
pelas percepções intuitivas à construção do conhecimento. (ASCUN. 1992, nº 20,
p. 15-16)
À
legitimação da intuição acresce a
percepção do homem comum dos fatos e fenômenos que o cercam e enriquece
sobremodo o conhecimento. De modo especial ganha em qualidade. O conhecimento
intuitivo credencia-se assim como conhecimento legítimo, no mesmo nível do
analítico-indutivo e do sintético-dedutivo. Goza da mesma legitimidade tanto
dos conhecimentos chamados pré-científicos, quanto os populares próprios das
pessoas comuns. Justifica-se reservar um espaço conveniente para uma reflexão
mais demorada, devido à importância de cada um deles em particular. Mais ainda
se contamos com a possibilidade de riscos a que nos expomos. Acontece, porém, que
o fracasso nessas circunstâncias, pode até ser bem vindo, pois aplicando
correções e caminhos alternativos, chega-se a resultados positivos.