Construção do Conhecimento

O conhecimento pré-científico
O ponto de partida para entender a maneia peculiar de ser, agir e pensar do homem, deve ser procurado na sua natureza. Parece que ainda não se caracterizou com  maior acerto a natureza do homem do que a velha Filosofia grega. “O homem existe como os minerais – o homem existe e vegeta como as plantas – existe, vegeta, sente e possui instintos como os animais, mas pela inteligência reflexa que lhe permite raciocinar, eleva-se a uma categoria inteiramente nova.  No esforço de entender os mecanismos e processos que comandam a construção do conhecimento, não se pode ignorar a complexa realidade que vem a ser  o homem. É óbvio que a natureza químico-física, que determina a composição, a estrutura e as funções orgânicas influi, mais indireta do que diretamente, no comportamento. Isso vale  de modo especial para as atividades  responsáveis pela produção do conhecimento. É  nesse nível que a ferramenta “sine qua non” vem a ser a inteligência reflexa.  Não é menos verdade, porém, que essa capacidade não se resume num “epifenômeno” que opera nas e sobre as estruturas de um organismo feito de matérias comuns à natureza e na natureza. A inteligência reflexa não se vale do organismo material e dos seus órgãos e funções, como uma plataforma operacional, no sentido do velho dualismo de Hans Driesch. Nele se afirma que o “princípio vital”, no nosso caso, a inteligência reflexa, age sobre as estruturas matérias e as funções que nelas ocorrem, como o “capitão comanda o navio”. Hoje diríamos: como um  operador comanda um supercomputador.

Nos casos dos seres vivos em geral e do homem em particular, o dualismo de Driesch e dos seus seguidores no começo do século XX, foi superado pela concepção organísmica e sistêmica de Ludwig von Bertalanffy em meados do século XX. Mas para subsidiar a análise das bases e mecanismos da gênese do conhecimento, a partir da “intuição”, ou se preferirmos, no estágio pré-científico, a concepção da “antropogênese” de Teilhard de Chardin, parece ser muito mais útil. Na sua grandiosa visão da unidade do universo, da natureza, culminando no aparecimento do homem portador de inteligência reflexa, é central o conceito “consicência”. Embora não perceptível, melhor talvez, não atual, ela está de alguma forma presente em forma potencial no universo e na natureza em todos os níveis de “complexidade”, outro conceito chave em Teilhard. Na medida em que a complexificação se acentua pela agregação e incorporação de sempre mais novos elementos, a consciência sobe gradativamente à tona, iluminando com intensidade crescente as realidades que integram a  natureza. Cada passo mais adiante e mais acima na complexificação, abre caminho para mais consciência. Até o nível dos vegetais e categorias zoológicas  inferiores, o elemento “consciente” da consciência, permanece latente, melhor talvez, em potencial. Mesmo nessas categorias é possível perceber sinais de consciência. Protozoários como as algas diatomáceas, amebas e bactérias, circulam no meio liquido em que vivem, obedecendo a impulsos comandados pelo “instinto” da sobrevivência, próprio para cada espécie. Na dinâmica da evolução como Teilhard de Chardin a concebeu, estamos frente a uma manifestação efetiva de consciência rudimentar. A diatomácia, a ameba, a bactéria, tem “consciência”, tem “conhecimento”, do espaço e do meio em que circulam e realizam o ciclo da existência individual e da espécie. Instinto, consciência, conhecimento, parecem em última análise objetos de uma discussão secundária. O que de fato importa é que a diatomácia ou o tripanosoma se encontram num  estágio de complexificação evolutiva  que lhes oferece os meios que permitem a mobilidade suficiente no meio em que encontram o alimento e cumprem o ritual da  reprodução e perpetuação da espécie.

Saltando alguns degraus na complexificação  evolutiva encontramos os peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Em cada um desses grupos observa-se um nível de “consciência” sempre mais “consciente”. Um peixe, um batráquio, um lagarto, um sabiá, um cachorro, conhece, tem consciência, cada qual de acordo com seu grau de evolução e à sua maneira, por onde circular, com que se alimentar, como se reproduzir, que sinais são de alerta e quais os sinais, atitudes e os sons para se comunicar. Não se pode negar que no fundo estamos diante de um tipo, de uma forma de “conhecimento”. Se há conhecimento há consciência. Se há consciência e conhecimento, há “memória”. A experiência do quotidiano ilustra muito bem o que acabamos de teorizar. Um cachorro que apanhou uma única vez com uma  vassoura, evita esse artefato sempre que puder, ainda mais quando estiver nas mãos da pessoa que lhe aplicou a vassourada. O cachorro aprendeu que a vassoura não é coisa boa quando nas mãos de uma determinada pessoa. Parece que não há dúvida de que a reação do cachorro na presença daquela pessoa com uma vassoura na mão, implica tanto em consciência, quanto em memória. Outro exemplo não menos ilustrativo é o da vaca pastando num piquete cercado com um fio de arame eletrificado. Depois do primeiro choque o animal não se aproxima mais do fio. O dono pode desligá-lo tranquilamente porque a vaca, com a experiência desagradável, fixou na memória  o acontecido e tem consciência de que aquele fio não é coisa que se toque. Vão na mesma linha as experiências realizadas com os reflexos condicionados.

Os exemplos mostram que os animais possuem memória e consciência. Por meio delas munem-se do “conhecimento” necessário para garantirem a sobrevivência  dos indivíduos e da espécie. Convém lembrar, porém, que se trata de um conhecimento instintivo e, por isso mesmo, não  permite mudanças, adaptações,  reformulações ou alternativas, a não ser que sejam induzidas por um agente externo. Não se pode, portanto,  falar num verdadeiro “aprendizado”. Tudo se passa ao nível dos reflexos condicionados pois, os animais se ressentem da carência de “reflexão”, ausente do seu potencial de desenvolver conhecimento. Dito de outra forma. É licito falar em inteligência em se tratando de um animal, com a ressalva de que não é “inteligência reflexa”, prerrogativa exclusiva do homem. Sendo assim, os animais por mais “inteligentes” que possam ser, são incapazes de parar diante de um problema que se lhes antepõe, entender a sua natureza, analisar formas e alternativas de solução, optar por aquela que promete melhores resultados. Esse tipo de procedimentos é privativo do homem, porque tem à sua disposição o inesgotável potencial da “inteligência reflexa”. Carente dessa prerrogativa o animal não tem como recorrer a alternativas. Ou o instinto comporta uma solução dentro dos limites  de suas potencialidades, ou fica sem alternativas para superar a situação.

Pelo simples fato de o homem, em comum com os animais, vir equipado com os mesmos instintos, não há como não aceitar que o seu comportamento se ressente e em muito desse seu lado animal. Como movimentar-se nas eventualidades da vida, implica a um nível considerável, da sua condição de animal, entram na construção do conhecimento muito mais elementos de origem e natureza instintiva do que se percebe à primeira vista ou, quem sabe, se gostaria de admitir.

Pelo visto chegamos na fronteira, na faixa de transição, na qual se passa gradativamente, “sensim sine sensu”, do conhecimento puramente animal-instintivo para o humano-racional-reflexo. O conhecimento animal vai passando para um segundo plano na medida que o potencial instintivo tiver dado o que tinha a dar. Na entrada da faixa de transição o conhecimento do homem quase se confunde ainda com o de animais mais próximos a ele na escala taxonômica, como são os antropóides. Mas uma vez desencadeada essa transição, a dinâmica da construção do pensamento acelera-se no ritmo de uma progressão geométrica. No final da travessia os instintos que o homem continua compartilhando com os animais, vão ocupar um lugar secundário no perfil do conhecimento. São subsumidos, melhor talvez, pouco perceptíveis, à semelhança  das raízes de uma árvore. São indispensáveis para o abastecimento do tronco, galhos e folhas, com os nutrientes indispensáveis para conferir solidez à majestade, por ex., a uma araucária secular.

A busca da razão determinante que permitiu ao homem a travessia do “Rubicão” que marca a fronteira entre o conhecimento animal e humano, termina na consciência reflexa. A diferença entre o conhecer por instinto e o conhecer pela reflexão, pode ser formulado da seguinte forma: o animal valendo-se do instinto “sabe” as coisas, o homem valendo-se  da inteligência reflexa, é capaz de “saber o porque do seu saber”. Nesta distinção está implícita a explicação para a fronteira intransponível para o “saber e o conhecimento animal”. No homem, ao contrário, não se vislumbra um limite que barre o avanço, a diversificação, o enriquecimento e o aperfeiçoamento do conhecimento. O dínamo desse processo chama-se inteligência reflexa. Ela permite as operações mentais necessárias para superar os impasses da vida, responder os “porquês”, analisar e comparar situações, formular conceitos abstratos, seguir caminhos alternativos em situações idênticas, recorrer a soluções diferentes para resolver os mesmos desafios. Só assim foi  possível que a humanidade começasse discretamente em algum lugar na terra, a epopéia vitoriosa da construção do conhecimento. A inteligência reflexa foi  o motor que movimentou e movimenta ainda hoje  as culturas localizadas dos coletores, caçadores, pastores, agricultores e as grandes civilizações históricas. E, enquanto homens povoarem a terra, essa história continuará, marcada por períodos de exuberância, de feitos espetaculares, alternando com fases de fluxo e refluxo, até que o derradeiro ser humano  fechar as comportas do caudal da história da humanidade. Depois disso, a “terra sem gente”, como se intitula o seriado da televisão, retornará ao silencio, à quietude e, porque não, ao marasmo e à mesmice, entregue às leis da química, da física, da biologia e dos instintos.

Posto nesses termos convido a acompanhar os diversos passos, ou se preferirmos, os diversos estágios da ascensão histórica da construção do conhecimento intuitivo pré-científico. A entrada em cena do primeiro ser humano portador de inteligência reflexa, marcou o momento em que a relação de interdependência com o ambiente natural começou a entrar numa fase inteiramente nova. Pouca ou nenhuma diferença faz a data histórica e o local em que ocorreu. Tão pouco importa se aquele primeiro ser humano foi resultado da evolução natural ou não. Também não faz diferença a fisionomia externa mais ou menos teromorfa ou antropomorfa. O que de fato fez a diferença foi a capacidade de raciocinar, de executar operações reflexas. Significou na entrada da história da vida de um fato qualitativamente novo. A discussão entre os cientistas, filósofos e teólogos de hoje resume-se na pergunta se esse salto de qualidade, essa travessia do Rubicão, significou apenas a conquista de mais um nível na progressão da evolução, ou se é devida a uma causa externa a ela. Não é nossa intenção aprofundar aqui essa questão.

O fato é que a capacidade de raciocinar, de assumir uma atitude reflexiva perante a própria existência e do seu entorno, revolucionou na sua própria natureza o conhecimento. A relação passiva própria do comportamento instintivo, cedeu lugar a uma relação ativa comandada pela capacidade de refletir. E com isso  a própria natureza do conhecimento e da consciência assumiram uma dimensão impensável até então.

Não dispomos de dados e de informações objetivas materiais  de como começou e prosperou  a construção do conhecimento, a partir dessa nova relação do homem consigo mesmo e com o mundo que cercava. Os registros de informações isoladas e esparsas, como artefatos líticos e fragmentos de ossos, não permitem uma avaliação mais precisa. Dados em número suficiente para reconstituir culturas, só a partir dos 20000 anos passados ou depois. Uma imagem da atividade do homem antes desse período só com o recurso à lógica, à imaginação e à ilação.

Partindo da convicção de que os primeiros humanos eram portadores de um cérebro capaz de operações reflexas, na sua essência iguais às do homem atual, temos condições de imaginar como tudo começou. Não faz grande diferença se o potencial de raciocínio de então era menor do que o do homem de hoje. O que importa é que em ambos os casos está presente o grau de reflexão suficiente para desencadear operações mentais que levam à construção do conhecimento. Quem sabe uma analogia entre a ontogênese e a filogênese do homem seja útil nesse esforço. Não é da nossa intenção requentar  a discussão de cem anos passados, quando Ernst Haeckel   formulou a “Lei Biogenética Fundamental”, que afirma que a ontogênese, a evolução individual, era o resumo da filogênese, a evolução em geral. É uma questão a ser resolvida ao nível dos estudos da evolução. De qualquer forma observa-se  um paralelismo muito sugestivo entre o despertar da consciência reflexa de uma criança e a manifestação  dos sinais da presença da mesma, há muitos milênios entre os “primitivos” seres humanos. Não  há dúvida de que traçar um paralelismo  entre a evolução  ontogenética e filogenética aplicada à evolução da construção do conhecimento, tem seus limites. O despertar da criança para a consciência reflexa e, a partir daí, para a construção do seu conhecimento, é um fenômeno que podemos acompanhar no quotidiano. O mesmo já não é possível em se tratando da infância da humanidade. Há a saída pelo recurso à analogia e, porque não, à imaginação. Considerando bem, a imaginação nos leva mais longe. Evidentemente a imaginação não pode dispensar, neste caso, um mínimo de objetividade, melhor, uma objetividade possível. E essa objetividade  possível nos garante tanto a analogia com o aprendizado de uma criança, quanto  a experiência do quotidiano quando as pessoas tomam consciência dos desafios, procuram entendê-los, inventam formas para resolvê-los e criam as tecnologias e instrumentos específicos, traçam o caminho as seguir executam as ações necessárias para solucionar os problemas.

Que essa seqüência  de procedimentos pressupõe inteligência reflexa, dispensa teorias complicadas. Da mesma forma  como o humano do terceiro milênio, os humanos de quinhentos mil anos ou mais atrás, assumiram a mesma atitude frente aos desafios da vida. Não importam nem as circunstâncias, nem  a origem, nem a natureza do problema. Constado o fato entra em atividade o complexo mecanismo do raciocínio. Na identificação dessa situação o instinto contribui em dose mais ou menos elevada. A avaliação que segue requer o concurso da inteligência, requer reflexão. Os dois níveis de conhecimento estão sempre presentes. O processo costuma ser desencadeado  pela reação instintiva do homem frente a uma eventualidade. O fato é identificado pelo instinto. A partir do momento, porém, em que se dá a constatação, ou se toma consciência do fato, entra em ação o poder da reflexão. No animal o processo estagna ao nível da constatação e da tomada de consciência. Em conseqüência também o conhecimento não evolui para além e para cima desse patamar. Observa-se ainda que, por isso mesmo, as respostas de que o animal dispõe, ficam confinadas também no patamar da constatação e da tomada de consciência, o que equivale ao conhecimento instintivo. Nessa situação a resposta só pode ser uma, isto é, aquela prevista pela própria natureza instintiva de cada caso em particular. Em se tratando do homem a constatação e a tomada de consciência são apenas o ponto de partida, a base sobre a qual a inteligência reflexa vai operar, a matéria prima com que vai construir o conhecimento. E nesse processo de construção do conhecimento   contribuem diferentes fatores que decidem o rumo que a operação  mental vai tomar, a configuração que se vai imprimir e o perfil que resulta no final. E nessas diversas fases e dimensões do processo influem as circunstâncias concretas em que  cada situação concreta acontece. Elas são co-responsáveis  pela forma como se dá a constatação, os estímulos e a consciência. Tomemos como exemplo a morte de uma pessoa. Constatado o fato e tomado consciência do que aconteceu, entra em ação uma seqüência de processos mentais reflexivos sobre o significado daquele fato. Procura-se explicar o acontecimento em si, as repercussões sobre o próprio defunto, sobre seus familiares, sobre as pessoas das suas relações mais chegadas, sobre o grupo social ao qual pertenceu. Tudo isso acontece já ao nível da inteligência reflexa. A morte é vista e avaliada na moldura do cenário cultural em que ocorreu. As reflexões sobre o destino do defunto acontecem na perspectiva do imaginário e das crenças cultivadas no grupo social em que viveu. A repercussão social é avaliada de acordo com o significado do seu status, da posição e importância  do falecido nos seu grupo social.

No esforço de acompanhar a construção do conhecimento, partindo da base formada pelos estímulos de natureza instintiva, é estimulante percorrer os estágios evolutivos nos quais a inteligência reflexa vai dando as coordenadas. Como não dispomos de dados materiais objetivos, para reconstituir a história do conhecimento daqueles tempos remotos não há outra saída a não ser  recorrer a ilações. Formam um caminho legítimo, supondo que se tomem algumas precauções. É importante conduzir a lógica partindo de uma premissa válida e confiável. E parece  aceitável como pressuposto suficientemente seguro, a convicção de que a natureza humana permaneceu na sua essência a mesma, desde o primeiro humano dotado de  inteligência reflexa.

Basta  observar  as reações das pessoas no quotidiano ao se defrontarem com uma eventualidade qualquer. Não importa se são situações pessoais, fenômenos naturais, animais, acontecimentos coletivos. O primeiro impacto vem acompanhado de reações de natureza instintiva, esperáveis em tais situações. Passado o primeiro susto, admiração e surpresa, entra em cena a inteligência reflexa.  A pessoa se recompõe, procura arredar para um segundo plano os efeitos causados pelas reações instintivas e irracionais, e trata de encarar a situação com parâmetros racionais. Uma  reflexão calma e sóbria permite inteirara-se objetivamente dos acontecimentos, entender ou não entender do que se trata, avaliar as conseqüências, buscar soluções adequadas, traçar estratégias, optar por meios e ferramentas eficientes e, por fim, tentar solucionar o problema. Essa sucessão de procedimentos nos moldes de um fluxograma usual em projetos, assume no homem no começo da pré-história, contornos de todo espontâneos e informais. Aliás reações  parecidas são comuns entre as pessoas do povo simples e pouco letrado. O importante na questão não é como, ou a que nível é levado, à base de que métodos, as coisas acontecem, mas a energia, o motor que dá partida e depois move o processo uma vez em andamento que é a capacidade de reflexão. E o pressuposto que permite o raciocínio já esteve presente, na sua essência pelo menos, nos primeiros humanos, como nas pessoas mais cultas e sábias de hoje.

Theodosius Dobzhansky, um dos geneticistas mais importantes e mais influentes do século XX, explicitou com rara  precisão a interdependência entre instinto e racionalidade, quando da elaboração da cultura. Como a cultura em última análise é fruto do conhecimento, a afirmação que ele faz da gênese e evolução da cultura é, por extensão, válida também para o conhecimento.

O homem e só ele possui a capacidade de pensamento simbólico e ter consciência de si mesmo. O ser humano tem  a capacidade de contemplar-se como objeto entre outros objetos. Como conseqüência é capaz de optar, de relacionar e controlar-se a si mesmo, da mesma forma como está em suas mãos dominar e controlar a natureza. Da mesma maneira como os demais seres vivos, a natureza fornece as impressões sensoriais. Os animais conhecem as circunstâncias que os rodeiam, mas  o homem tem a consciência do seu conhecimento.  Todas as espécies de multicelulares morrem, mas o homem é o único animal que sabe que vai morrer. A espécie humana e outras espécies biológicas evoluíram e se encontram em plena evolução, mas só o homem descobriu o fato da evolução. Como conseqüência somente o homem, se assim o desejar, pode aceitar ou rejeitar a linha da evolução, imposta pelas forças cegas da natureza. Só ele tem condições de entender, controlar e orientar a sua própria evolução. (Dobzhansky, Theodosius. Herencia y naturaleza del hombre. Trad. de Juan José Stevens, Edti. Pzada, S.A., Buenos Aires, 1969, p. 152.)

A tentativa de descrever a gênese da construção do conhecimento desde o seu nascedouro, não pode ignorar os pressupostos formulados por Dobzhansky. Colocado na perspectiva da evolução o homem evoluiu em dois planos: no biológico e no cultural. No biológico o processo evolutivo fundamenta-se nas mesmas bases bioquímicas das demais milhões de espécies de seres vivos. A natureza biológica resume-se no mesmo “ácido desoxiribonucléico”, mais conhecido como DNA, de uma ameba, de uma planta, de um vertebrado, de um mamífero ou do homem. Sob este aspecto, portanto, o homem comporta-se exatamente da mesma forma  como uma ave, um peixe ou um vegetal. As características  condicionadas pelo DNA, são transmitidas de geração em geração. Não podem ser compartilhadas  a não ser pelos descendentes diretos.

Mas o que faz a diferença entre o homem e demais espécies vivas é sua capacidade de reflexão e, por isso mesmo, ter consciência de si mesmo e das realidades em sua volta. Isto se chama conhecer, isso se chama desenvolver uma cultura. Acontece que a capacidade de conhecer, de desenvolver cultura, não se herda pelo DNA. Aprende-se e transmite-se via aprendizado individual e coletivo. Foi  novamente Dobzhansky  que resumiu com rara propriedade a questão.

O sentido técnico em que o termo “cultura” está sendo empregado aqui, todos os povos modernos e antigos, avançados e primitivos o possuem. A cultura não consiste apenas naquilo que se aprende nos livros e nos bons manuais. Compreende muito mais do que isso.  Consiste na soma total de hábitos, crenças, costumes, linguagens, técnicas, de modo geral tudo aquilo que pensam e fazem as pessoas como resultado de um aprendizado anterior. A cultura é exclusivamente humana. Nas demais espécies zoológicas só se encontram os vestígios mais rudimentares de transmissão cultural, suficientes para convencer os evolucionistas de que nossos antepassados humanos possuíam elementos a partir dos quais evoluiu a capacidade cultural no decorrer da história. A linguagem humana constitui-se numa característica especialmente distintiva da cultura. Por meio dela a cultura é transmitida de geração em geração. As assim chamadas “linguagens animais”, os gritos, os cantos ou ruídos por meio dos quais uma ave ou um mamífero se comunica com seus semelhantes são, na realidade, fenômenos muito distintos  da linguagem humana. As palavras que a compõem são símbolos convencionais que representam objetos, ações e relações. A linguagem humana é muito mais eficiente como meio de comunicação pois, revela a capacidade de pensamento simbólico e abstração, dos quais se percebem apenas rudimentos entre os animais. (Dobzhansky. Op. Cit. p. 153)


Na passagem que acabamos de citar Dobzhansky condensou com perfeição os elementos desencadeadores do conhecimento. Mesmo que não faça uso do termo “conhecimento”, todos os elementos que o envolvem, encontram-se  no conceito de “cultura”. Afinal, tanto um quanto o outro, lidam com o mesmo objeto formal, isto é, a construção da história do homem através dos tempos. Tomadas essas precauções, estamos em condições de acompanhar a evolução do conhecimento. E, para não ficar patinando em reflexões teóricas e abstratas, tentemos acompanhar a trajetória da construção do pensamento em algumas áreas que se tornaram os pilares mestres de culturas e civilizações. Pretendemos emprestar atenção especial à evolução do conhecimento em algumas delas.

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