O cenário histórico
A década de 1850 marcou o
período em que a imigração alemã começou a emitir sinais inequívocos de consolidação.
Um quarto de século havia passado desde o desembarque dos primeiros 39
imigrantes em São Leopoldo. A primeira geração de brasileiros natos, filhos de
imigrantes alemães, chegava à idade adulta. As provas de fogo a que foram
submetidos naquele período os haviam submetido a um duro aprendizado. Em linhas
gerais saíram-se muito bem e, ao mesmo tempo, demonstraram estar à altura das
tarefas que o futuro lhes reservara. Aprenderam a lidar com a mata virgem que,
no início, para muitos, parecia invencível. De hostil e assustadora
converteu-se em parceira e aliada. Os
solos que há séculos dormitavam na
penumbra dos gigantes seculares e da vegetação impenetrável, não decepcionaram.
Depois de expostos pelos golpes do machado e da foice e tornados aráveis,
retribuíram com fartura. O milho, o feijão, a batata inglesa e a batata doce, a
mandioca e mais de uma dúzia de outras culturas reduziram a penúria e a
escassez dos primeiros anos a um pesadelo de noite uma mal dormida. Das
entranhas da mata virgem os colonizadores retiravam as madeiras para a
construção dos seus primeiros abrigos e, mais tarde, para as moradias mais
confortáveis. Para suprir as necessidades cotidianas havia lenha em abundância
e de primeira qualidade.
Uma outra questão não pode ser
esquecida. Para as gerações daqui nascidas somadas às levas de novos imigrantes
que chegavam em número crescente, havia terras
cobertas de mata virgem à vontade. Estendiam-se a perder de vista para o
oeste e para o norte. As primeiras clareiras abertas na mata denunciavam a
presença de frentes pioneiras no vale do Caí, do Taquari, do Pardo e do Jacuí.
Essa grande bacia hidrográfica formadora
e alimentadora do Guaíba, sinalizava
para a formação a curto prazo de uma região geoeconômica de significado
extraordinário. Nela consolidava-se
uma economia alternativa para o Rio Grande do Sul ao lado da criação de gado no
campo. Em questão de poucos anos, os trechos navegáveis dos rios
transformaram-se em hidrovias movimentadas. Barcos de passageiros navegavam
regularmente entre Porto Alegre e os
portos fluviais de São Leopoldo no rio dos Sinos, São Sebastião e Montenegro no
rio Caí, Mariante, Taquari, Lajeado e Estrela no Taquari, Rio Pardo no rio
Pardo e Cachoeira do Sul no Jacuí. Pelas mesmas vias, seguiam os barcos
carregados com mercadorias para abastecer o interior colonial. Os portos
fluviais recebiam os produtos coloniais, feijão, banha, farinha de mandioca
principalmente, das casas de comércio, das “vendas” localizadas nas picadas e,
ao mesmo tempo, que as abasteciam com tecidos, ferramentas, utensílios de
cozinha, sal, açúcar e uma infinidade de
outras mercadorias. Na década de 1870, a estrada de ferro começou a cruzar a
região de leste a oeste, oferecendo mais uma alternativa para a movimentação de
cargas e passageiros.
Foi também nessa época em que os
caixeiros viajantes consolidaram uma relação de notável eficiência entre a
capital do estado e o interior colonial. Representando as casas de importação e
exportação de Porto Alegre, percorriam
sistematicamente toda a região. Foram, em parte, os grandes responsáveis pela
consolidação de elos permanentes entre o meio urbano e colonial. Não faziam
fluir apenas mercadorias e dinheiro, como também cultura, ideias e
conhecimentos. Portadores de uma formação mais apurada, geralmente de cunho
liberal, atuavam também como “fermento cultural”, eram um visitante nem sempre
bem-vindo nas comunidades coloniais, tradicionalmente muito religiosas e pela
própria natureza mais fechadas.
Esse cenário serviu como pano de
fundo sobre o qual se consolidou, entre 1850 e 1900, o projeto da colonização
com imigrantes alemães. Os mercados do centro do País, ávidos pelos produtos do Rio Grande do Sul sem
concorrência, transferiram somas vultosas para o Estado. O dinheiro vivo que
circulava na região colonial estimulou o comércio. O período ficou conhecido na
história como “o período das onças de ouro”. Toda essa euforia fez subir,
diversificar e sofisticar as expectativas de consumo. Com dinheiro sonante no
bolso, o colono voltou-se para mercadorias industrializadas e importadas, em
detrimento dos produtos do seus
artesanatos. Importava-se de tudo: tecidos, ferramentas, utensílios de cozinha,
móveis, bebidas, cimento, manteiga, ferragens e outros mais.
Essa situação de euforia, porém,
não duraria indefinidamente. Embutidos nessa dinâmica havia três senões que
preocupavam. Em primeiro lugar a economia colonial apoiava-se na exportação para os mercados do centro do
País, sobre apenas três produtos: feijão, banha de porco e farinha de mandioca.
Acontece que, principalmente São Paulo e Minas Gerais tinham condições tão
boas, senão melhores do que o Rio Grande do Sul, para desenvolver essas
culturas. Os solos e o clima eram no mínimo tão favoráveis como no sul.
Faltavam apenas iniciativas tanto públicas quanto privadas para explorar esse
potencial. E a ocasião apresentou-se no
final do século XIX. Os dois estados mencionados, mais do que outros,
intensificaram e expandiram as culturas de milho, feijão e mandioca. O
resultado foi previsível. Desencadeou-se uma concorrência cada vez mais acirrada entre os produtos paulistas e
mineiros e os mesmos que vinham do Rio Grande do Sul. O custo do transporte,
desde o interior colonial, passando por Porto Alegre, Rio Grande e, finalmente,
via capotagem, para o centro do País, inviabilizava qualquer tentativa de
competição. Como resultado aviltaram-se os preços e diminuiu a circulação de
dinheiro entre os colonos. Não demorou e o comércio de importação e exportação
entrou em ritmo de desaceleração preocupante.
Os colonos acostumados
durante décadas a concentrar todo o
empenho nas culturas de feijão, milho, mandioca e a criação de suínos,
assistiam com apreensão, a
desvalorização desses produtos no mercado. A situação reclamava medidas rápidas
e de longo alcance. Uma parte da solução, com certeza, deveria ser procurada na diversificação das culturas
e, quem sabe, na procura de mercados alternativos. Era preciso encontrar
urgentemente tais culturas para permitir a ampliação do leque de ofertas ao
mercado, tanto regional quanto nacional e, porque não, internacional.
Paralelamente ao problema
originado pela concorrência dos produtos
do centro do País e a falta de culturas
novas, uma outra questão veio a preocupar os colonos. No final do século XIX
tornaram-se evidentes os primeiros sinais de exaustão dos solos nas áreas mais
antigas da colônia. A responsabilidade desse problema tinha tudo a ver com a
estrutura e a legislação fundiária e os
métodos usados no manejo da terra. No que se refere à estrutura e legislação,
convém destacar o tamanho relativamente pequeno dos lotes, em torno de cinquenta hectares na época. Ao mesmo tempo não havia
uma legislação que disciplinasse o uso da terra. O título de propriedade
permitia ao proprietário dispor, sem restrições, do seu lote. Se achasse por
bem, podia desmatá-lo inteiramente, sem se preocupar com a preservação de uma
parcela da mata original. As encostas
dos morros com mais de vinte e cinco por cento de declive eram despidas
da cobertura vegetal e, em poucos anos,
a erosão carregava a camada fértil do solo. A limpeza do terreno pelo método da
coivara, já de saída subtraía ao solo boa parte da sua fertilidade. No preparo
da terra para o plantio, usava-se amontoar galhos, palha de milho e outros
materiais orgânicos, queimá-los, apressando assim a limpeza do terreno. Além de
privar a terra de uma massa orgânica apreciável e preciosa, não se cultivava o
hábito de adicionar ao solo nutrientes de qualquer espécie. No momento em que a
terra dava sinais de esgotamento, derrubava-se mais um eito de mato. Em casos
adiantados, a parte exausta era entregue à capoeira. O feijão e o milho,
principalmente, exigem terras férteis para renderem uma produtividade
compensadora. Entende-se assim que as colônias mais antigas mostrassem sinais
inequívocos de baixa fertilidade. Um alerta nesse sentido foi dado já no final
da década de 1880 pelo Pe. Ambros Schupp, publicado na revista “Alte und neue
Weld:”
Despedimo-nos,
montamos a cavalo e partimos para São Salvador. São mais ou menos duas horas da
tarde e o calor é quase insuportável. Agora, graças a Deus, subimos a encosta
do morro. Uma porção de mato fechado cobre o seu dorso, um último e solitário
resto de mata virgem. Poderíamos dizer, uma ilha tranqüila que restou para
testemunhar um mundo desaparecido”.
“Na verdade, há
menos de trinta anos balançavam, como as ondas do mar, até perder de vista, as
copas das árvores, sem interrupção, uma encostando na outra. O olhar topava em
toda parte com a terra plantada. Só aqui e acolá conservavam-se algumas áreas
de mato. O colono, como parece evidente, quer extrair do seu chão, o mais
rápido possível, o maior proveito que puder. Só calcula com o presente e suas
vantagens. Não pensa no futuro e no bem
da coletividade. (Schupp, Ambros, Alte und neue Welt, 1889, p. 313)
A preocupação manifestada pelo
Pe. Schupp já fazia parte da apreensão de não poucas mentes mais lúcidas. No
texto, destaca-se que a situação apontada referia-se ao vale do rio Caí e
Sinos. Nessas duas bacias o desmatamento havia avançado até o ponto que começava a inspirar cuidados.
Na hipótese de não se tomarem providências, pessoas mais atentas previam o
desaparecimento, em médio prazo, da cobertura vegetal natural, além do
aceitável. O Pe. Schupp creditou à mentalidade imediatista e individualista dos
colonos a responsabilidade pela situação, até certo ponto explicável. Havia
urgência em conquistar o chão arável à mata e, dele, extrair os meios de
sobrevivência. A preocupação com o futuro e a coletividade podia esperar.
Uma terceira preocupação veio
somar-se às duas anteriores. Ao findar a
década de 1880, a disponibilidade de terras nas bacias fluviais formadoras do
Guaíba, estavam praticamente esgotadas. Cá e lá ainda se podiam encontrar
algumas colônias, geralmente na periferia dos morros, acidentadas e difíceis de
serem trabalhadas. A alta taxa de natalidade e a baixa mortalidade infantil,
somada à inviabilidade de divisões indefinidas dos lotes coloniais por natureza
pequenos, fez com que a pressão populacional
assumisse proporções preocupantes. Os trezentos excedentes na média
gerados ao ano por cada mil famílias, reclamavam por terras. No início do
século XX tornara-se inadiável encontrar
uma solução rápida, abrangente e de médio e longo prazo. Não havia mais lugar
para soluções tópicas de curto prazo. A situação exigia a abertura de novas
fronteiras agrícolas de longo alcance, medindo em torno de 35.000 quilômetros
quadrados.
Uma quarta área crítica veio a
ter a necessidade urgente de criar e implantar um sistema de poupança e
empréstimo. Entre os colonos, circulava um volume respeitável de dinheiro. Era
preciso tirar esse dinheiro de baixo do colchão, fazê-lo render juros para o
dono e, ao mesmo tempo, acumular fundos que, emprestados aos colonos, permitiam
a aquisição de terras, ferramentas, máquinas etc. Esses mesmos fundos poderiam
servir como capital de giro para iniciativas particulares ou financiar projetos
de colonização, construção de asilos e
hospitais. Além de financiar as iniciativas e necessidades dos colonos e
garantir o suporte financeiro para novas colonizações, outras iniciativas
encontrariam recursos na poupança acumulada nas caixas de poupança e
empréstimo. Entre essas demandas, merecem destaque a saúde, a educação, a
religião e outras mais. Cabia-lhes, portanto, o papel de combustível para
movimentar todo o espectro da economia em particular e da vida da colônia em
geral.
Nos primeiros 75 anos da
imigração alemã e nos primeiros vinte e cinco da italiana, a economia colonial,
dependeu inteiramente do desempenho individual de cada colono. Cada qual
cultivava o que lhe parecia mais conveniente. Supridas as necessidades da
família, entregava-se o excedente no comércio local. Os comerciantes das
picadas ofereciam os preços que oscilavam de acordo com as regras da oferta e
da procura, e forneciam as mercadorias destinadas a cobrir as demandas dos
fregueses. A lógica desse sistema fazia
do colono um dependente da maior ou menor boa vontade de exploração dos
comerciantes. De qualquer forma, aos fregueses restava uma margem de manobra e
uma autonomia muito limitada. Não dispunham de nenhum poder de barganha frente
aos comerciantes, e, por isso mesmo, a economia colonial como um todo sofria
muito com os altos e baixos de mercado, não raro artificialmente manipulado
pela cadeia de comércio que envolvia o “vendeiro” nas linhas e picadas,
passando pelos intermediários nos portos dos rios e terminando nas casas de
importação e exportação em Porto Alegre.
Urgia encontrar um caminho
alternativo eficiente para conferir aos colonos a força coletiva necessária
para defender os seus interesses comuns e fazer valer as suas reinvindicações.
A todas essas questões veio
somar-se mais uma. Até a Segunda Guerra Mundial não havia nenhum tipo de
assistência social para suprir as necessidades dos colonos. As despesas com
médicos, hospitais e remédios ficavam por conta dos doentes ou dos responsáveis
por eles. Os atendimentos gratuitos oferecidos pela Santa Casa de Misericórdia
em Porto Alegre, eram insuficientes e fora do alcance da grande maioria. Numa
situação parecida, encontravam-se os idosos. Sem aposentadoria para os
agricultores, eles, ao chegarem à velhice, ficavam na dependência dos filhos ou
de instituições destinadas para o seu atendimento.
Da mesma forma como havia urgência
para pôr em andamento mecanismos coletivos para melhorar a situação econômica,
formas e estratégias comuns tornaram-se inadiáveis para suprir outras demandas.
Somente dessa maneira, seria possível enfrentar a construção, a instalação, a
manutenção e o funcionamento de hospitais, asilos, orfanatos, instituições
especializadas no acolhimento de tuberculosos, leprosos e doentes mentais.
Toda a questão da educação
compunha um conjunto complexo de
desafios. Até o final do século XIX a escola e a educação estava
entregue às comunidades individualmente. As diretorias das escolas, eleitas
pelos membros das comunidades, estabeleciam os parâmetros, as expectativas e as
demandas relacionadas com a educação. A seu cargo estava a infraestrutura
material, decidiam sobre o conteúdo
curricular e sobre a duração do período escolar, além de contratar, fiscalizar
e estipular os honorários do mestre-escola. A rápida expansão colonial e a
consequente multiplicação numérica e a dispersão geográfica das escolas
reclamavam a adoção de uma filosofia comum para orientar a educação como um
todo e, como consequência, a formulação de um proposta pedagógica comum, além
da implantação de um currículo comum e, finalmente, a fixação de um período
escolar de duração igual para todas as escolas.
Havia mais uma área de vital
importância a ser atendida. A implantação do projeto da Restauração Católica
achava-se em pleno andamento. Como projeto de Igreja, exigia o comprometimento e o engajamento coletivo.
Seu êxito dependia de uma apurada organização do povo católico nas suas dioceses
e comunidades paroquiais. Além dissso as mais diversas formas de piedade
popular e de militância religiosa assumiam uma importância cada vez maior. Como
é fácil de perceber, não havia como confiar a iniciativas isoladas e
desarticuladas a responsabilidade pelo suporte ao projeto da Restauração Católica. O empenho
conjugado do clero, das lideranças católicas leigas e do povo em geral, era
fundamental.
E no plano religioso e
eclesiástico a implantação da República em 1889 adicionou mais um ingrediente.
A separação do Estado e da Igreja, a laicização dos cemitérios e do casamento,
livraram de um lado a Igreja da tutela do Estado, do outro entregaram à sua
exclusiva responsabilidade e competência a condução dos seus negócios. Garantir
um lugar ao sol no novo cenário político nacional tornara-se inadiável. O
estado laico contando, no início pelo menos, com fortes correntes anticlericais
e hostis à Igreja, exigia da parte dela uma ampla e forte coesão. Até um projeto
visando à expulsão dos jesuítas estava sendo articulado. Era forçoso pois, encontrar uma fórmula de convivência no
mínimo civilizada com as autoridades do novo regime. No Rio Grande do Sul, essa
questão assumiu características próprias. O governo do Estado encontrava-se nas
mãos dos positivistas e por eles seria controlado até 1930. Nesse caso, é
possível destacar um lado positivo. Embora em nível filosófico e doutrinário
não houvesse condições para um entendimento mútuo, no campo prático, as coisas
se passavam bem mais tranquilas. Tanto os positivistas no governo com Júlio de
Castilhos e, mais tarde, com Carlos Barbosa e Borges de Medeiros, quanto os
jesuítas, os pastores protestantes, as
lideranças coloniais e os colonos em geral prestigiavam valores éticos comuns:
a honestidade no trato com a coisa pública e privada, o respeito à hierarquia,
a operosidade, a ampla autonomia de iniciativa e outros.
Em grandes linhas, era esse o
cenário em que se encontravam os imigrantes e seus descendentes ao término do
século XIX. Nesse quadro, situavam-se também os imigrantes italianos, poloneses
e outros grupos minoritários e, até certo ponto também, os luso-brasileiros.
Uma avaliação atenta da situação
deixa claro que o projeto de colonização no sul do País deitara raízes
profundas, e caminhava para uma consolidação definitiva que, entretanto,
avançara até um ponto em que circunstâncias as mais diversas, inspiravam sérios
cuidados e convenceram as lideranças de que alguma coisa tinha de ser feita com
urgência; que não havia lugar para iniciativas pontuais e isoladas; que era
preciso enfrentar o tamanho e a
complexidade da situação por meio de um projeto amplo, abrangente e conduzido
de forma global, pensado para médio e longo prazo.