O associativismo solidário teuto-brasileiro

Antes de nos demorarmos sobre as diversas formas de associações que reuniram os imigrantes alemães e seus descendentes em busca de objetivos comuns, é preciso identificar a ideia força responsável pelo sucesso dos projetos de promoção humana promovidos pelas associações das quais nos ocuparemos nas postagens que seguem. A ideia força chama-se Solidarismo o que vem a ser na prática uma via alternativa ao Individualismo e ao Coletivismo ou, se preferirmos, uma Terceira Via entra as duas mencionadas. Começamos chamando a atenção de que não consiste na sua essência  da composição do que há de positivo, tanto no Individualismo quanto no Coletivismo. Falamos  de uma alternativa, uma via que parte de fundamentos ontológicos essencialmente diversos das duas outras. No Individualismo mais ou menos indivíduos comprometem-se, por meio de um pacto ou qualquer outro vínculo, a formar uma unidade que recebe o nome de sociedade. O compromisso não passa de um compromisso pactuado com a finalidade de produzir bens, garantir serviços, estabelecer regaras de conduta, montar os aparelhamentos de defesa externa e segurança interna e, acima de tudo, garantir, como valor maior, a liberdade individual e o seu livre exercício. Numa sociedade organizada sobre tais fundamentos, a produção e distribuição dos bens é confiada à livre iniciativa e estimulada pela livre concorrência. As constituições e as leis ordinárias dos estados que adotam o Individualismo liberal como modelo limitam-se em assegurar o efetivo exercício da liberdade em todos os sentidos. Nos modelos mais exacerbados, a prática da lei do mais forte transforma o convívio das pessoas num autêntico devoramento mútuo. Os antigos romanos falam em sociedade de lobos que se devoram mutuamente: “homo homini lúpus”.

O Coletivismo, nas suas mais diversas formas e modalidades, parte de uma concepção oposta   da pessoa e do indivíduo. Para ele o que vale é o coletivo. O indivíduo vale pelo que significa para a coletividade e é capaz de contribuir. Anula-se dessa forma ou, no mínimo ignora-se que o indivíduo é dotado por natureza de necessidades, desejos, aspirações materiais e espirituais que radicam na natureza íntima da individualidade  como pessoa. Também nesse caso, nos modelos mais extremos como é, por ex., o Marxismo-Leninismo comunista, o indivíduo vira peça de uma gigantesca máquina burocrática que o reduz a um ente sem direitos, só com deveres. O ateísmo materialista como “religião”  desvia a esperança das pessoas para o paraíso utópico de uma sociedade sem classes vivendo em harmonia perfeita. O caminho que deveria levar até esse ideal, porém, confiado a nomenclaturas tão ou mais cruéis do que o Individualismo liberal, empurra o horizonte utópico da harmonia final, a distanciar-se sempre mais.  E, de fato, vista com objetividade, a realização da promessa de uma harmonia final apresenta-se como uma linha que, à maneira do horizonte, afasta-se na medida em que se tenta alcançá-la.

O Solidarismo apresenta-se como alternativa, como uma terceira via entre os dois extremos de que acabamos de falar. Na obra “O Solidarismo”, de Aloysio Bohnen e Reinholdo Ullmann, de que nos valemos amplamente aqui o Solidarismo fundamenta-se nas seguintes bases. O jesuíta Heinrich Pesch, o filósofo e formulador das linhas mestras dessa terceira via, define que se trata de um “sistema que se idnterpõe – Vermitteldendes System” entre o coletivismo e o individualismo. Outro jesuíta, Gustav Gundlach, discípulo de Pesch, apontou para a mesma direção e explicitou ainda melhor as condições para que o Solidarismo poder ser considerado como uma terceira via, para poder considera-lo como meio termo  entre os “ismos” que lhe são opostos. Coforme Gundlach o Solidadrismo assume as características de uma via intermediária, um terceiro caminho – uma “Linie der Mitte”, capaz de superar as contradições implícitas nas duas outras vias. O cardeal Höffner concorda que se trata de uma terceira via e não de um arranjo, uma conciliação entre o Coletivismo e o Individualismo. Chamou a atenção de que o “princípio do Solidarismo” não deve ser entendido como um meio termo entre os “ismos” de que se costuma falar, porque o princípio da solidariedade tem, ao mesmo tempo, como ponto de partida a dignidade da pessoa e a natureza essencialmente social do homem. Assim entendido o Solidarismo constitui-se numa terceira via essencialmente diversa das outras. (cf. Bohnen-Ullmann, 1993, p. 125)

O cardeal Höffner  identificou claramente o fundamento que confere a solidez e originalidade da terceira via: a dignidade pessoal e individual da pessoa humana e sua dimensão social. A individualidade ontologicamente pessoal vem dotada de uma dignidade que não lhe pode ser contestada por argumentos de qualquer espécie. De outra parte, a natureza pessoa, individual é, ao mesmo tempo ontologicamente social. A conclusão lógica é inequívoca. A realização plena da pessoa está condicionada ao pertencimento a uma sociedade, a qual lhe garante a subsidiariedade indispensável para suprir as limitações pessoais. De acordo com essa concepção define-se, como ponto de partida, uma relação de todo diferente das pessoas com a sociedade na qual estão inseridas e participam ativamente. Começa por aí que a sociedade não se origina de um pacto acertado entre seus membros, estabelecendo as regaras, os ordenamentos e os dispositivos legais, para elaborar projetos de desenvolvimento, por exemplo. Tão pouco a sociedade é um ente inventado por alguma filosofia ou ideologia  na qual as individualidades pessoais são degradados a pelas  que movimentam a máquina social em direção a uma utopia radical impossível. Avaliado a partir dessa perspectiva, o Solidarismo cosntitui-se de fato numa via alternativa de caráter essencialmente humano. Aprofundando um pouco mais a natureza dessa “via do meio – Linie der Mitte” de Gundlach, é oporuno citar novamente os autores de “O Solidarismo”. Eles classificam didaticamente suas caractere do mútuo influxositicas em quatro níveis:

1.      Seu fundamento natural e real asseta na dependência recíproca do ser humano com relação ao outro; se bem-estar e estar bem dependem do bem-estar dos outros, por causa do mútuo influxo para o aperfeiçoamento da natural carência humana.
2.      Como princípio jurídico, o Solidarismo conduz à responsabilidade pelo bem comum. Envolve, pois, um dever ético, o qual defende e salvaguarda a autonomia dos indivíduos e as associações intra-estatais; subordina os interesses  particulares aos da comunidade; enquadra o direito privado no direito da sociedade, segundo o princípio da colisão dos direitos, sem abolir, nem limitar, arbitrariamente, nem reprimir a economia privada. A solidariedade representa a síntese de todas as forças individuais e sociais, para colimar os objetivos do Estado, ao qual cabe zelar pela parte mais fraca da sociedade.
3.      A solidariedade, como princípio formador  da sociedade propicia e dá origem, de acordo com as condições históricas e as necessidades dos diversos segmentos sociais (associações, agremiações, etc.)A solidariedade não favorece nem patrocina interesses unilaterais, porém, coo força cultural atuante, visa, exclusivamente ao bem comum e à união dos opostos, tendo por meta a construção da harmonia social, na busca do equilíbrio de interesses conflitantes.
4.      Finalmente não se pode silenciar que a solidariedade é, também, um princípio criativo, com fundamento no amor de Cristo, o qual vê no outro um irmão. (Bohnen – Ullmann, 1993, p. 126-127)


Parece que, com o que vínhamos expondo, ficaram suficientemente delimitadas as fronteiras, os marcos divisórios entre o Coletivismo, o Individualismo e o Solidarismo. São como água e azeite. Não se misturam. São três vias paralelas mutuamente excludentes. O Solidarismo exige que a justiça garanta os direitos de todos igualmente, sem privilegiar uma ou outra classe ou nomenclatura e deixa no abandono a outra como acontece no Individualismo ou aniquilada pelo aparelhamento burocrático como sucede no Coletivismo. No Solidarismo, todas as energias, tanto dos indivíduos quanto das agremiações, associações e das instituições públicas, são canalizadas em favor do corpo social como um todo. E o corpo social como um todo sadio, robusto,  bem aparelhado, mas cônscio de que cada pessoa é uma individualidade com direito à livre determinação e escolha dos seus atos, favorece na outra ponta, a realização, a satisfação e a harmonia entre as pessoas.

Pois, foram os princípios do Solidarismo adotados como fundamentos para o associativismo teuto-brasileiro a partir da década de 1890, que explicam os êxito em todos os seus empreendimentos.

As primeiras tentativas foram feitas já na década de 1890. Tratava-se ainda de iniciativas  com aspectos específicos. Sob o impacto da proclamação da República e suas consequências, partiu-se para a fundação de um partido político católico. Inspirado no “Zentrumspartei” – Partido do Centro, da Alemanha, deveria definir e garantir o lugar da Igreja Católica no cenário político republicano. Foi denominado de “Partido Católico do Centro”. Não chegou nem perto da força e influência do seu irmão maior na Alemanha, que se tornara a grande força de oposição a Bismarck e do seu projeto, o “Kulturkampf”. Sua atuação efetiva limitou-se à participação na eleição da assembleia constituinte federal e estadual. No primeiro caso, não logrou eleger um único deputado. Para a constituinte estadual elegeu três deputados, mas recorrendo a uma composição com outras legendas. Essa estratégia rendeu ao partido uma cisão interna insuperável. Essas duas experiências eleitorais provaram a inviabilidade do partido. Com isso a ideia de militância política direta foi abandonada.

Uma segunda tentativa de arregimentação também tópica, aconteceu com a “Associação de Proteção às Florestas”. Duas lideranças destacaram-se nessa iniciativa: o Pe. Pedro Gasper, apelidado de “apóstolo da floresta” e o sr. Alfred Grohmann, o “pai da floresta”. A ideia resultou prematura e, por isso mesmo, não obteve a adesão, a não ser de alguns colonos isoladamente.

De tentativa em tentative,  terminou-se finalmente em 1897 por recorrer a uma outra forma coletiva para enfrentar as questões de interesse comum, adotada na Alemanha, na Suíça e na Áustria desde a década de 1860: “Os Congressos Gerais dos Católicos”. os “Katholikentage”. Nesses eventos reuniam-se as lideranças leigas e eclesiásticas, urbanas e rurais e o povo em geral, com a finalidade de identificar e avaliar questões de interesse comum, procurar soluções e traçar estratégias de ação. Serviram de  fórum no qual se discutiam os rumos a serem tomados na condução das grandes questões relacionadas com a economia, a assistência social, a educação, a cultura e a religião. Como se pode ver pela sua natureza, esses “Congressos” dispunham de legitimidade e de competência, mais do que suficiente, para enfrentar cenários mais abrangentes e mais complexos.

A primeira experiência nesse sentido aconteceu em 1897 em Bom Jardim (Ivoti). Serviu de prévia e de teste de viabilidade daquele instrumento entre os católicos alemães no Rio Grande do Sul. Os resultados foram suficientemente animadores, para que os congressistas decidissem convocar o primeiro Congresso Geral oficial do Rio Grande do Sul, para fins de março de 1898, a ser realizado em Harmonia,  então  distrito do município de Montenegro. A escola e a educação deram o tom ao congresso. Um grupo de professores, liderados pelo Pe. Pedro Gasper, apresentou o diagnóstico  sobre a situação da rede escolar comunitária. A proposta da fundação de uma associação de professores ocupou boa parte das discussões e debates, resultando na “Associação dos Professores e Educadores Católicos do Rio Grande do Sul.” Naquela ocasião,  não se avaliou ainda a possibilidade de propor um projeto global de desenvolvimento econômico e promoção humana. Em todo o caso a fundação de uma associação de professores que, daí para frente,  encarregar-se-ia da área vital da educação, conferindo unidade e consistência a uma proposta pedagógica afinada com a necessidade da época, depunha em favor da seriedade do Congresso. O entusiasmo dos congressistas reunidos em Harmonia foi tal que decidiram marcar um segundo Congresso Geral dos Católicos já para o ano seguinte, 1899, em Santa Catarina da Feliz.

Na programação daquele Congresso, entre outros temas de grande relevância, fora prevista uma conferência a cargo do Pe. Theodor Amstad, versando sobre a situação econômica da colônia. Com o Pe. Asmtad entrou em cena o personagem-chave na formulação de propostas  para os quarenta anos que se seguiriam. Suas peregrinações, principalmente pelo vale do rio Caí, haviam-lhe dado uma percepção nítida do que estava acontecendo. Nas longas cavalgadas solitárias, concebeu, aos poucos, o grande e audacioso projeto que proporia no Congresso em Santa Catarina da Feliz. O discurso que proferiu e que será reproduzido na íntegra mais abaixo, constitui-se numa peça extraordinária. Num linguajar que até o mais modesto dos colonos foi capaz de entender, pintou a situação real em que se encontrava a colônia. As coisas não poderiam continuar como estavam. Era preciso envolver num projeto todos os aspectos da vida, apoiado no pressuposto de uma união geral das forças e das potencialidades disponíveis. Ao concluir a sua fala tirou da manga  o esboço de uma proposta na qual se previam objetivos múltiplos. Colheu aplausos entusiásticos e a adesão unânime para a fundação da Associação Riograndense de Agricultores. No Congresso de 1900, realizado em São José do Hortêncio aconteceu a instalação oficial da Associação.
No decorrer da última década do século XIX e no início do século vinte, os colonos individualmente, as comunidades coloniais, os comerciantes das picadas e das médias e grandes cidades, começaram a sentir, com insistência cada vez maior, uma nova problemática. O sucesso relativo da colonização tornara a economia cada mais dinâmica, mais rentável e mais volumosa. A produção de excedentes em ritmo crescente relegara ao passado a produção destinada unicamente para a subsistência. Excedentes eram produzidos, exigindo para serem colocados no mercado local, regional e nacional. Ao mesmo tempo, tornara-se rotina a importação de produtos de toda a ordem a custos e preços elevados. Com a indústria nativa ensaiando os primeiros passos tímidos, quase todos os produtos manufaturados dependiam obrigatoriamente da importação. O resultado não deixa dúvidas: uma dependência cada vez mais acentuada dos países industrializados da Europa e uma manipulação crescente da economia e dos preços por parte dos grandes comerciantes.
A tomada de consciência dessa realidade despertou entre as lideranças leigas e religiosas dos imigrantes a convicção  de que era preciso fazer alguma coisa e com muita urgência. O papel de porta-voz foi assumido por padres jesuítas, por  lideranças leigas, entre as quais se destacaram professores das escolas comunitárias, e por personalidades portadores de um grau de formação mais apurado, na sua maioria residentes em Porto Alegre.
Personalidades como o P. Theodor Amstad, o P. João E. Rick, Max von Lassberg e o Sr. Hugo Metzler tornaram-se referências quando se tratava de discutir os problemas da colônia. O P. Amstad era filho de um suíço comerciante de produtos coloniais. Como tal, trouxera da casa paterna um rico acervo de conhecimentos e principalmente um arguto espírito de percepção da problemática que envolvia a colônia na época. Desembarcara em Porto Alegre em setembro de 1885, e foi designado para atuar pastoralmente entre os colonos na região do vale do rio Caí. O contato diuturno e prolongado com os problemas que afetavam as comunidades coloniais fizeram dele em pouco tempo o grande condutor dos imigrantes. A par do bem-estar  espiritual e religioso preocupavam-no também a saúde social e o sucesso econômico das  ovelhas do rebanho que lhe fora confiado. Levava muito a sério tudo que pudesse contribuir para a promoção  humana individual e coletiva. O mesmo espírito animava os demais líderes tanto religiosos quanto leigos. E as ações concretas nesse sentido não se fizeram esperar.


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