Fronteiras de colonização #6

Começos da colonização de Porto Novo
A compra dos cem primeiros lotes coloniais de 25 hectares cada um por parte da Sociedade União Popular, da Empresa  Chapecó-Peperi Limitada, constituiu-se na base objetiva  para a viabilização do  projeto. Começar com cem lotes pode parecer muito pouco ambicioso. E de fato o era, como o próprio Pe. Rick registrou nos seus apontamentos. O fato deveu-se unicamente a não disponibilidade imediata de recursos para bancar, no contrato inicial, uma área maior. Como a área disponível oferecia perspectivas reais para uma ampliação indefinida no futuro, o começo modesto significou na verdade, o embrião de um projeto que deu origem direta e indiretamente à colonização de todo extremo oeste de Santa Catarina.

E, de fato, em questão de poucos meses, foram aparecendo os recursos para a aquisição de sempre mais lotes. Em 16 de março de 1926, realizou-se em Novo Hamburgo o Congresso dos Católicos. A colonização de Porto Novo ocupou um destaque privilegiado na programação do evento. A diretoria da Sociedade União Popular  reuniu-se para dar seguimento à compra de novos 100 lotes, na medida em que a Empresa Chapecó-Peperi Ltda enfrentava problemas com recursos para continuar as demarcações. Diante dessas dificuldades, a diretoria  decidiu reunir a soma de R$ 275:000$000 (duzentos e setenta e cinco contos de reis) e pô-los à disposição da vendedora como forma de adiantamento para, desse modo, agilizar a liberação dos lotes para a aquisição dos colonos. No momento, já se podia contar com R$ 190:000$000 (cento e noventa contos) oferecidos pelas caixas rurais de Serro Azul, cem contos; Colônia Selbach, dez contos de reis; Santa Maria, cinco contos; Picada Café, vinte contos; Taquara, cinco contos; Picada Herval, vinte contos. Além das caixas rurais, a ata registrou ainda uma extensa lista de pessoas físicas que contribuíram com somas variadas, em troca  de notas promissórias.

Nas entrelinhas da reunião que tratou da arrecadação de fundos para a aquisição de terras e assim desafogar a pressão populacional que se agravava de ano para ano nas colônias mais antigas, um detalhe ficou evidente. A Sociedade União Popular, como um projeto de desenvolvimento global e de promoção humana, demonstrou nesse seu subprojeto de colonização, toda a sua potencialidade. O lema escolhido na sua fundação “omnibus omnia” – “tudo para todos” demonstrou o acerto da filosofia que animava  o projeto e as estratégias que norteavam as iniciativas. As caixas de poupança e empréstimo ao modelo Raiffeisen ou cooperativas de crédito, ou caixas rurais, fundadas em 1902, cumpriam magnificamente as suas funções. De um lado ofereciam aos colonos condições seguras para as suas pequenas poupanças. A soma de dezenas de milhares delas avolumaram, em menos de três décadas uma formidável poupança interna na região colonial. Cumpriam a importante função de financiar, em condições aceitáveis, iniciativas e necessidades coletivas ou individuais. Forneciam também os recursos para bancar projetos de colonização de grande porte como foram Serro Azul e Porto Novo. As poupanças acumuladas nas caixas rurais viabilizaram também obras de grande importância social, como o asilo para idosos em São Sebastião do Caí. As obras que justificaram a existência da Sociedade União Popular, tornaram-se possíveis por meio dessas instituições de poupança e empréstimo.

Fechados os primeiros contratos de  compra de lotes com a Empresa Chapecó-Peperi Ltda a abertura da nova fronteira de colonização estava em condições de acontecer. Na reunião da Diretoria da Sociedade União Popular, realizada em Santa Cruz, no dia 28 de janeiro de 1926, foram estipulados os preços e as condições de venda dos primeiros lotes. O documento assinado pelo presidente Jacob Becker, o secretário geral Pe. Johannes Rick e o secretario “ad hoc”, Albano Volkmer informa textualmente:

Os lotes serão vendidos por enquanto ao preço de 2:250$000 (dois contos duzentos e cinquenta mil reis) à base de 25 hectares (vinte e cinco hectares) por lote. O pagamento integral à vista dá ao comprador o direito de um abatimento de 10% (dez por cento), portanto, 2:025$000 (dois contos e vinte e cinco mil reis) por lote. Os sócios da Sociedade Volksverein terão uma bonificação extra de 25$000 (vinte e cinco mil reis) para a primeira colônia e 5$000 para as subsequentes que adquirirem para si ou os filhos maiores. Os agricultores que se estabelecerem ainda no correr deste ano na Colônia terão um abatimento especial de 400$000 (quatrocentos mil reis) que será descontado  do seu debito se não o tiverem pago, ou lhes será devolvido si o houverem feito. A Empresa Chapecó-Peperi Limitada manterá um linha de automóveis de Neu Würtemberg até a sede de Porto Feliz, custando a viagem redonda 60$000 (sessenta mil reis). Aqueles que adquirirem  terras, pagando valor por conta, verão creditada essa importância  de 60$000 (sessenta mil reis), o que importa em viagem gratuita. Todo o agricultor  que tiver escolhido lote terá de fazer uma entrada de 1:000$000 (um conto de reis) por conta do mesmo. No caso de não poder fazer desde logo, por não ser provável que todos se premunam de dinheiro para essa viagem de exploração, poderão pagar o sinal de 100$000 (cem mil reis) obrigando-se a entrar com o restante dentro de três meses. Ficou estabelecido o juro anual de sete por cento (7%) para os (ilegível) (Ata da Diretoria da SUP, 28 de janeiro de 1926)

A data oficial da fundação de Porto Novo ficou sendo 11 de abril de 1926. Para liderar o grupo de pioneiros, fora escolhido o Pe. Max von Lassberg, veterano fundador de fronteiras de colonização em Serro Azul, San Alberto e Puerto Rico, no alto Paraná, na Argentina. Naquela data, na companhia dos primeiros colonos, rezou a primeira missa à sombra do primeiro laranjal cultivado  em Porto Novo. Em suas “Reminiscências” descreveu assim o acontecimento:

Na segunda-feira de Páscoa de 1926 de manhã cedo, parti de automóvel de Serro Azul, em companhia do senhor Franzen primeiro diretor nomeado da Colônia e de seu filho. Além de nós, seguiu em três caminhões lotados uma numerosa caravana vinda de Serro Azul, Santo  Cristo e Selbach, para examinar as terras. Depois de errar algumas vezes o caminho, alcançamos Porto Feliz na quinta-feira. Na sexta-feira, embarcamos numa gasolina para descer o rio até Porto Novo. Alguns preferiram o caminho por terra. O nível do rio estava muito baixo, o que nos causou grandes dificuldades na passagem pelas corredeiras. Em não poucas delas, fomos obrigados a desembarcar e arrastar e empurrar com os braços. Dessa forma, chegamos em Porto Novo apenas no sábado. Não havia nem casa, nem cabana, nem barraca, mas um bonito pomar de laranjeiras. Nele acampamos, mais de Trinta pessoas e acendemos vários fogos. Perto da noite começamos a arrumar, entre as árvores, o altar para a missa da outra manhã. Como pano de fundo, estendemos entre as árvores uma capa de chuva limpa e fixamos nela um crucifixo. A mesa foi armada com varas e folhas e depois ornamentada. As velas foram amarradas em duas estacas fincadas no chão. Depois de cuidar das coisas de Deus, cuidamos também de nós. Para comer tínhamos o suficiente e cada qual arrumou a cama onde e como lhe agradou. Dormimos bem. O misterioso rumor do grande rio misturou-se com os nossos sonhos. A santa missa começou pelas oito horas da manhã. Os homens rodeavam o altar numa atitude solene e piedosa. Na magnífica catedral de Deus, por meio do Santo Sacrifício, imploravam a bênção para a nova colônia. Na missa alguns comungaram. Em comum cantou-se, rezou-se e ouviu-se o sermão. Até o prato de ofertas circulou. Também dessa forma,  todos deveriam demonstrar a sua participação no verdadeiro sacrifício e fora combinado que aquela santa missa seria para os fundadores da colônia presentes e o que sobrasse deveria destinar-se a missas pelo bom êxito e o progresso da colônia. O saldo foi considerável. Esta foi a primeira missa  e a da fundação da colônia e escolhemos São Pedro Canísio como seu patrono. Acontecido no domingo da pascoela, 11 de abril de 1926. (Lassberg, Max. Reminiscências, Unisinos, 2002, p. 14-125)

Um pouco mais adiante nas suas “Reminiscências” o Pe. Lassberg descreveu a primeira incursão no interior do território da colônia, em companhia dos seus pioneiros.

A viagem de volta foi muito variada. Eu mesmo percorri a cavalo o primeiro trecho até o arroio Macuco, limite leste  de nosso território católico e, apenas lá, embarquei no navio. Nesse meio tempo, o rio subira um pouco, mas não o bastante para que as corredeiras pudessem ser contornadas ou passadas sem perigo. A correnteza ficara tanto mais forte. Felizmente levamos a bordo uma corda muito comprida. A maioria dos homens atrelava-se nela e arrastavam a gasolina para frente, até as coxas dentro da água e muitas vezes até o peito, quando se caía num buraco no leito rochoso. Um grupo que se tinha separado bastante dos demais correu com isso um sério perigo. Por causa da violenta correnteza, dois homens foram tomados de vertigem e perderam a segurança. Dois outros permaneceram com eles e os seguraram, mas também não conseguiram, e a nós não foi possível socorrê-los com o barco. Somente depois de prender a lancha entre as rochas, alguns de nós se dirigiram-se  até os quatro homens segurando-os numa ponta da corda. Finalmente conseguiram safar-se da situação perigosa e alcançar a embarcação. Entretanto anoitecera e alertei o homem do barco que atracasse no primeiro local favorável. “Os homens estão cansados e encharcados. Precisamos acender um fogo para que todos se possam secar.” Não demorou para encontrarmos um lugar apropriado no barranco do rio no lado rio-grandense coberto com grandes moitas e coberto de areia limpa e seca. Antes de mais nada ajuntamos lenha e acendemos um bom fogo, enchemos as panelas com arroz, esquentamos água para o chimarrão e colocamos erva nas cuias. Depois que tudo estava mais ou menos sob controle e sentados em volta do fogo, provoquei: “Meus caros! tivemos um dia muito trabalhoso e passamos por sérios perigos. É correto e não custa nada agradecermos a Deus pela sua proteção. Por isso proponho que rezemos duas dezenas do terço glorioso e o Anjo do Senhor como oração da noite. Cada um permaneça sentado, ajoelhado ou em pé no seu lugar e os cozinheiros que cuidem do arroz e aquele que tem a cuia a esvazie.” Todos participaram com entusiasmo da oração e por fim entoamos o canto “Glória seja dada ao vencedor da morte”. Tudo isso soava tão belo  noite a dentro em meio à selva. Algo semelhante nem os papagaios nem os macacos jamais escutaram em sua mata.
Depois, deitamos para dormir. Mas já às dez horas fomos despertados por uma pancada de chuva, curta e que perturbou pouco. Pelas duas horas começou uma chuva forte e persistente. A maioria levantou-se ou ficou sentada ao redor do fogo. Eu puxei o poncho por cima da cabeça e fiquei deitado. Ao clarear o dia, aprontamo-nos para seguir viagem, e chegamos sem sobressaltos a Porto Feliz. Num dos dias seguintes pernoitamos em Fortaleza num assentamento novo de italianos onde estava em construção uma capela de tábuas. Rezei de manhã bem cedo a santa missa, ocasião em que todos os nossos camaradas de viagem fizeram uma bela comunhão entre cantos e orações coletivas. Mais tarde contou-me o vigário de Palmeira, que, de quando em vez, visitava toda a região, como os  italianos falaram com alegria e louvor  a respeito do comportamento e da piedade dos bravos colonos alemães. (Lassberg, Max. Reminiscências. Unisinos, 2002, p. 125-126)

O Pe. Rick descreveu da seguinte forma o seu primeiro contato com as terras pretendidas para a nova colonização:

Em começos de 1926, quando o término das inquietudes revolucionárias já permitia uma colonização em regra, dirigi-me de automóvel, com o Senhor Faulhaber e os ormãos Stangler a Barrril, (perto de Frederico Westpfalen9, proseguindo de lá, a cavalo, até Prto Feliz, pelo caminho novo ainda em construção.
Um dia depois, segui de barco a motor Uruguai abaixo. Penroitamos ao relento a jusante do Peperi, sendo que depois voltamos ao Meinzhusen, no Macaco, onde aportamos à noite 
Em nossa voalta era tudo floresta intacta. Experts em qustão de terras declararam ser o solo de primeira qualidade.  As matas  existentes afiguravam-se portentosas. A madeira de lei tinha sido derrubada, decerto, por balseiros argentinos. A colocação de produtos via Palmeira (das  Missões) por si só se me apresentava suficientemente promissora. Perguntei, por conseguinte, ao barqueiro, se acaso, no Uruguai a navegação rio abaixo era possível. Respondeu-me ele: Eu sempre consigo passar. (Rabuske, Arthur – Rambo, Arthur. Pe. João Rick. Unisinos, 2004, p. 123-124)

Novamente fica claro nas entrelinhas  das descrições tanto do Pe. Lassberg quanto do Pe. Rick, que o cenário da nova colonização estava posto e bem ao gosto dos filhos e netos de três a quatro gerações de colonos habituados a conviver e a lidar com a floresta virgem. E não se tratava apenas de um convívio meramente utilitário. Consolidara-se uma parceria  íntima, existencial entre os colonos e suas florestas virgens.

Os trinta pioneiros que acompanharam  o Pe. Lassberg, procediam de Serro Azul, Santo Cristo e Selbach. Considerando que as duas primeiras dessas colônias, Serro Azul e Santo Cristo, contavam com menos de trinta anos desde a sua fundação, uma boa parte deles havia participado da abertura dessas fronteiras. Foram os herdeiros autênticos da estirpe de homens e mulheres que ousaram abandonar tudo na Europa, enfrentar o oceano e tentar a vida e o futuro no Brasil. Deve-se isso a um misto de aventureirismo, de inquietude, de vontade de avançar e progredir sem parar e à mística quase messiânica de uma missão a cumprir, o clima de progresso e bem-estar que dominava na região da colonização recente.


Uma grande admiração, uma reverência atávica deve ter-se apoderado  dos exploradores, ao contemplarem aquele majestoso cenário de florestas intocadas. Bem como seus ancestrais germânicos do centro e norte da Europa, souberam encarar a mata virgem como promessa de um porvir promissor.  Nela encontrariam as matérias primas para armar os primeiros abrigos e depois, construir as primeiras moradias. A mata virgem preparara por milênios  a fertilidade dos solos, garantia de fartura para as gerações que aí viriam instalar-se. Nela, construiriam suas referências de vida o seu mundo simbólico. O palco, portanto, estava posto e mais uma etapa da colonização do sul do Brasil, tinha condições de acontecer. E, de fato, não se perdeu tempo.

This entry was posted on terça-feira, 2 de dezembro de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.