Os jesuítas e a imigração alemã – o projeto pastoral


O Pe. Augustin Lipinski foi um silesiano austríaco nascido em 1809, dotado de um caráter enérgico, que entrara na Companhia de Jesus com 20 anos. O apaziguamento dos agricultores sublevados na revolução de 1848, rendera-lhe méritos especiais. Chegou ao Brasil com 40  anos, em pleno vigor físico.
O Pe. Josepf Sedlac nasceu, em 1812, na diocese de Budweis  na Boêmia. Ordenado sacerdote diocesano em 1837 trabalhou na cura de almas da diocese durante sete anos quando entrou na Companhia de Jesus.
O terceiro do grupo dos primeiros jesuítas de língua alemã foi o irmão Anton Sontag, descrito como modelo de bom irmão, inteligente e de grande versatilidade.
Os três embarcaram para o Brasil no dia 1º de fevereiro de 1849. Depois de passar por  uma tempestade no Mar do Norte e muitos perigos na travessia do Atlântico, pisaram finalmente terra firme em Rio Grande no dia 14 de julho. Chegaram ao cenário de trabalho no dia 14 de agosto. Este dia de agosto não foi um dia qualquer para o sul do Brasil. Significou um marco de repercussão histórica de difícil avaliação, não só para o futuro dos imigrantes alemães, como para a história das demais vertentes étnicas radicadas na região.
Na data em que os três jesuítas começaram as suas atividades na colônia alemã de São Leopoldo, a situação da organização eclesiásticas no Sul era, em resumo, esta. Até o ano de 1842 o Rio Grande do Sul estava sob a jurisdição da diocese do Rio de Janeiro. Em maio daquele anos Pio IX criou a diocese do Rio Grande do Sul. A posses do primeiro bispo, D. Feliciano José Rodrigues Pimenta, ocorreu somente em 30 de julho de 1853. O novo bispo não era nenhum intelectual de renome. Como pároco da cidade de Encruzilhada do Sul gozava de grande estima do povo. Ele próprio dedicava-se à agricultura e, ao ser convocado pelo papa para assumir e organizar a nova diocese, pode ser comparado a Cincinato, chamado para o serviço divino quando arava sua lavoura. A freguesia de Encruzilhada era na época uma exceção pela vida sacramental intensa, coisa rara nas demais.
Em 1849, ano da chegada dos três primeiros jesuítas de fala alemã, a região colonial estava sob a jurisdição de três paróquias: São José do Hortêncio, desmembrada da paróquia de Sant’Ana em 1848, Dois Irmãos, pertencente a São Leopoldo e toda a margem direita do Caí  sob a jurisdição de Triunfo. Ao tomar posse dos seus postos de trabalho encontraram as comunidades de colonos em vias de formação e não poucas já consolidadas em torno de suas capelas, escolas e cemitérios.  A Missão que começava a ser implantada encontrava-se sob a jurisdição da Província dos jesuítas da Espanha. Em 1861 passou para a Província Romana e em 1869 para a Província da Alemanha e, finalmente, em 1827 Província autônoma com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso.
A situação religiosa dos colonos, privados durante um quarto de século de assistência religiosa regular, encontrava-se seriamente comprometida. Protestantes e católicos somavam aproximadamente a metade nas comunidades. Este estado de coisas oferecia sérios problemas para exercício da cura de almas. A consequência mais imediata foram os casamentos mistos e a indiferença religiosa. A prolongada  privação de uma cura de almas regular, generalizara entre os católicos uma espécie de embotamento religioso. Apesar  de tudo, porém, a necessidade religiosa estava viva debaixo das cinzas. Na falta de sacerdotes recorreram a um culto divino leigo e confiaram a sua condução a um colono escolhido do seu meio. Este, mais piedoso do que sensato, desgarrou-se pouco a pouco do caminho reto, permitindo-se os procedimentos mais inusitados. Para completar o cenário em que os missionários iriam trabalhar, temos as difíceis condições de locomoção na região. O cavalo ou a mula era a única opção para percorrer, além das grandes distâncias em trilhas abertas na mata, caminhos precários e estradas primitivas. Tudo isso tornava as cavalgadas solitárias por horas, cansativas, desgastantes e, não  raro, perigosas. Mais tarde houve casos fatais  em que padres  sofreram quedas sérias de suas montarias e três afogaram-se na travessia de rios.
Foi neste contexto social, religioso e físico-geográfico que os padres Lipinski e Sedlac e o irmão Sontag fixaram residência em Dois Irmãos e deram início a obra missionária que evoluiria nas décadas que se seguiram para uma autêntica obra civilizatória. Ainda no mês de agosto o Pe. Lipinski empreendeu uma cavalgada de reconhecimento pelo território povoado por imigrantes alemães. Partiu de Dois Irmãos fazendo a primeira escala em Bom Jardim (Ivoti), para depois visitar São José do Hortêncio. As três localidades polarizavam entre 3500 e 4000 almas.
O Pe. Lipinski fixou residência em Dois Irmãos e o Pe. Sedlac em  São José do Hortêncio. A fisionomia da colônia foi mudando pouco a pouco. Crescia a piedade e a observância do domingo e dias santificados, enquanto cediam na mesma proporção as diversões menos recomendadas, em especial a bebida e o jogo e os casamentos irregulares eram postos em dia. Logo no começo veio à tona quão inconveniente tinha sido a longa privação de uma assistência espiritual regular, somada à convivência  com os protestantes. A animosidade contra os padres tinha sua origem basicamente em duas questões nas quais o direito canônico os impedia  contemporizar: os casamentos mistos e os padrinhos protestantes em batizados católicos. Já pelo ano da chegada em 1849, o clima de hostilidade contra os padres atingira um nível crítico. O Pe. Lipinski encontrava-se em Hamburgo Velho por ocasião da festa da Imaculada Conceição, 8 de dezembro. Em tom provocador foi-lhe deixado claro de que, sem demora, os padres seriam obrigados a partir. Foi desenterrado o velho boato a respeito das fortunas, dos tesouros dos jesuítas que, afirmava-se, teriam a seu dispor navios para o transporte marítimo. Também não faltaram tentativas de denegrir moralmente os missionários, espalhando o boato de que mantinham mulheres em suas residências. Chegou-se ao ponto de tornar pública a notícia absurda de que os padres impunham como penitência às mulheres casadas com protestantes o envenenamento dos maridos. A situação ficou tão grave que o Pe. Lipinski sofre um atentado perto de “14 Colônias”. Felizmente nenhum dos três disparos o atingiu.
 De São Leopoldo, foco de todas as intrigas, foi mandado um libelo acusatório ao Presidente da Província. À essa altura  algumas senhoras do círculo de relações do Presidente, haviam tomado conhecimento do documento e alertaram o Pe. Martos, superior dos padres. Em vista desses acontecimentos o Pe. Martos, superior da Missão com residência em Porto Alegre, chamou o Pe. Lipinski. Partindo de Hamburgo Velho ouviu ofensas gritadas pelo povo e em São Leopoldo foi brindado com “gentilezas” nada agradáveis por parte do pároco. O Pe. Martos e o Pe. Lipinski foram dar explicações ao Presidente da Província (note-se que na época a autoridade civil também era autoridade religiosa). Este concluiu que não havia nada de errado no comportamento dos missionários e foi em pessoa no embarque do Pe. Lipinski, tirou o chapéu e despediu-se em voz alta para que todos ouvissem: “Boa viagem padre Agostinho!”

A tempestade mal acalmara quando um novo contratempo veio a perturbar a tranquilidade dos dois jesuítas. Desta  vez partiu do pároco de São Leopoldo. Este endereçou ao bispo um libelo acusatório, relatando tudo o que de desfavorável aos padres lhe tinha chegado aos ouvidos. O bispo mandou uma severa advertência aos dois padres. Nela alertava que se ativessem estritamente ao que dispunha o pároco e se abstivessem de ministrar os sacramentos sem a sua autorização. O Pe. Lipinski doente mandou o escrito do bispo ao superior da Missão em Porto Alegre. Este deslocou-se até Dois Irmãos para a avaliar os fatos. Constatou que, no fundo, tratava-se dos emolumentos. Depois de entender-se com o pároco, foi a Dois Irmãos buscar cópias autenticadas das respectivas autoridades, e voltou a Porto Alegre para encontrar-se com D. Feliciano. Este reconheceu a precipitação no envio da admoestação, reafirmou o reconhecimento e o apreço pelo trabalho dos padres e o desencontro estava superado.
Passados 10 anos o Pe. Verdugo, superior da Missão, percorreu as colônias alemãs de  Dois Irmãos, São José do Hortêncio e Bom Jardim. Deixou a seguinte avaliação do que viu: Entre uns preservou-se o espírito religioso, entre os outros os bons costumes e entre todos a bela harmonia, mérito depois de Deus, dos nossos Padres. Evitam propositadamente ocupar-se com as diferenças doutrinárias e religiosas. Em compensação insistem, para o bem de todos, numa vida de costumes puros. Desta maneira preserva-se a boa ordem e harmonia nas famílias. O jogo e as bebidas vão desaparecendo e o número de nascimentos extramatrimoniais diminuiu a tal ponto que entre os católicos se igualam a zero. Alimenta-se um verdadeiro horror aos casamentos mistos. Os costumes e hábitos alemães, alicerçados no amor, na vontade de trabalhar, na submissão dos filhos e na sua educação rigorosa, permanecem em pé.
O relato do Pe. Verdugo não deixa dúvidas de que no Rio Grande do Sul germinava a semente de uma obra que prometia frutos abundantes para o futuro do catolicismo não só daquela região como de todo o País. As décadas que se seguiram comprovaram à saciedade este prognóstico. O constante aporte de novas levas de imigrantes, o crescimento vegetativo dos já aqui radicados, somados à multiplicação e a intensificação das necessidades materiais e espirituais das comunidades coloniais, reclamavam reforços urgentes para auxiliar os dois primeiros jesuítas na monumental obra evangelizadora e civilizatória em gestação. Atentos aos fatos, os Superiores da Ordem, enviaram, em 1858, mais dois sacerdotes, os padres Bonifaz Klüber e Michael Kellner, acompanhados do irmão Franz Ruhkamp.

O texto completo sobreo Projeto Pastoral dos Jesuítas no Sul encontra-se no livro: Os Jesuítas no Sul do Brasil – o projeto pastoral. Arthur Blasio Rambo, Edit. Unisinos, 2013

Esquerda: igreja matriz de Tupandi e seu                              Direita: igreja matriz de Tupandí
Primeiro pároco: Pe.Mathias Pfluger, SJ                                  


This entry was posted on domingo, 17 de agosto de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.