O Sul muda com a imigração


Da América Latina, o Brasil é o país que ostenta o quadro étnico-cultural mais heterogêneo. Presentes estão grupos significativos representando diversas raças e culturas. Embora uns se concentrem mais numa região e outros noutra, encontramo-los em todo o território nacional. Para onde quer que se viaje, topa-se com o negro, o asiático, o branco e com todos os matizes de cor da pele e cabelos que a miscigenação foi capaz de  engendrar. Formas de vida  as mais diversificadas, costumes e cosmovisões divergentes, filosofia de vida às vezes exóticas, encontram guarida em solo brasileiro e, ao mesmo tempo, clima favorável para se manifestarem livremente. O que todos têm em comum é a esperança de que aqui, apesar de todas as dificuldades, existem condições reais e objetivas para construir um futuro melhor. Fiquemos apenas com a presença dos imigrantes alemães. A sua presença segue, em grandes linhas, a mesma lógica. A partir do século XIX, a administração colonial seguida da imperial, decidiu assegurar a soberania sobre as províncias do Sul. Esparsamente habitadas por estancieiros e alguns bolsões de colonos açorianos, esses territórios representavam uma tentação constante para as republicas castelhanas vizinhas. Por falta de súditos da Coroa Portuguesa para povoar essas regiões vazias o Conselho Ultramarino decidiu convidar migrantes do Centro e Norte da  Europa. A preferência caiu sobre alemães e italianos. Vários motivos pesaram: durante séculos vinham praticando a agricultura em pequenas propriedades: nunca tiveram problemas com a Coroa Portuguesa, como franceses, ingleses e holandeses e espanhóis. O casamento de D. Pedro I com a princesa austríaca D. Leopoldina, reforçou a preferência por alemães. Para os imigrantes um futuro promissor os esperava no sul do Brasil e para o Brasil ajudaria a resolver o vazio daqueles espaços, motivo de contínuas disputas e escaramuças  com os castelhanos do Paraguai, Argentina e Uruguai.
Se o elemento imigratório por si só já significou a presença de uma novidade étnico-cultural que marcaria para o futuro grandes extensões do Sul, outras novidades impor-se-iam para valer. Até então nos estados do centro e do norte do País predominavam os latifúndios concentrados na produção de açúcar, algodão e café , operados à base do trabalho escravo. e no Sul a criação de gado. Com a imigração alemã implantou-se o modelo da agricultura familiar diversificada em pequenas propriedades de 77 hectares no começo, diminuindo até 25 hectares cem anos depois do começo da imigração. A pequena propriedade resumia-se em última análise numa empresa familiar. Tinha como prioridade o sustento das famílias e, para tanto, era preciso praticar a diversidade de produção. Cultivava-se milho, feijão, batata, arroz, mandioca, aipim, trigo, cevada, etc. Os excedentes eram comercializados nas praças locais ou exportados para o Centro do País. Ao lado da produção agrícola os colonos criavam suínos, bovinos, equinos, galináceos, ovelhas e outros. A banha de porco rendia bons ganhos adicionais e não faltava colocação nos principais mercados locais, regionais e nacionais.
No Rio Grande do Sul, centro e oeste de Santa Catarina, oeste do Paraná, a pequena propriedade e a economia baseada na policultura, transformaram vastas regiões, numa paisagem humanizada inconfundível. As terras  foram repartidas sempre de acordo com o mesmo modelo. Um rio, um arroio, um dorso de morro, serviam como referência para  alinhar os lotes. Uma trilha no mato no começo, um caminho depois e, por fim, uma estrada,  permitiam  a circulação das pessoas, animais e produtos. As moradias dos colonos eram construídas próximas às estradas, cada qual no seu lote. No centro de uma unidade geográfica a igreja,  escola,  cemitério,  casa de comércio,  artesanatos e locais de lazer e diversão, tinham seu lugar garantido. Temos assim o perfil padrão das comunidades coloniais. As comunidades  organizavam-se com o tempo em unidades paroquiais, tendo como sede a maior e a mais estrategicamente localizada. Com o correr do tempo  essas sedes paroquias evoluíram para distritos e foram sendo contempladas com a infraestrutura necessária para o funcionamento da burocracia oficial: subprefeitura, subdelegacia e polícia, agência do correio, cartório de registros. A maioria das sedes das paróquias da época evoluiu para sedes de municípios.
A primeira providência pelos pioneiros ao atacarem uma nova fronteira de colonização consistia em abrir uma trilha de acesso aos lote, uma “picada”. Mais tarde a picada transformava-se em caminho, em estrada vicinal, em estrada municipal, dependendo do tamanho e da importância estratégica. Por terem sido as responsáveis pela circulação interna no espaço comunal e por isso serem o fator principal da sua integração, essas “picadas”, terminaram por significar a própria comunidade. Quando alguém usava a expressão “minha picada”, na verdade, referia-se à comunidade donde vinha ou morava. Uma lógica  semelhante aplicava-se às propriedades alinhadas ao longo de um arroio, falava-se em “linha” ou “lajeado”. Picada, Linha ou Lajeado indicam comunidades. Assim Picada Café, Linha Bonita ou Lajeado Grande, tem seus nomes consagrados pela lógica da evolução colonial.
A identidade geográfica das colonizações dos imigrantes vem acompanhada da consolidação das comunidades. Acontece que a comunidade, além da família, foi o eixo em torno do qual giravam os interesses e a vida dos colonos. Numa comunidade haviam nascido, nela encontrariam praticamente tudo do que precisavam no dia a dia, nela tinham o seu mundo de relacionamento humano, nela enfim, esgotava-se a existência da grande maioria. Importava, por isso, preservá-la de tudo quanto pudesse ameaçar a sua integridade.
Além da família cultivada como valor maior e educadora por excelência das novas gerações, outras providências não podiam faltar. Entre as mais importantes aparecem a Escola, a Religião, a Auto suficiência comunal e o Associativismo.
A Escola foi fundamental para afastar o perigo da decadência cultural e religiosa. Depois de se instalarem 15 ou 20 moradores numa nova Linha ou Picada, reuniam-se para criar uma escola, antes mesmo de pensar numa capela pois, a escola podia servir também para realizar os eventuais cultos ou missas, funcionando com “escola-capela”. Entre os membros da comunidade escolhia-se a Diretoria. Esta encarregava-se da construção do prédio, da instalação interna, do material didático, e o mais importante, escolher e contratar o professor, fiscalizar seu desempenho, vigiar-lhe a conduta e cuidar da sua remuneração e substituí-lo caso não satisfizesse. Conscientes da importância da escola e da formação básica, as comunidades canalizaram uma parcela significativa em seu favor. Fizeram dela uma instituição em que os filhos dos colonos, além de serem alfabetizados, familiarizavam-se com o manejo da língua falada e escrita. As crianças recebiam um sólido conhecimento de aritmética, cálculo de juros e porcentagens, além de informações sobre medidas, volumes e pesos e de tudo que fosse essencial para o bom andamento na administração da atividade produtiva. A escola supria a escassez de curas de alma ministrando aulas de Catecismo e Bíblia, assim como informações básicas sobre animais, plantas, manejo do solo, etc. A insistência na consolidação dos costumes, hábitos e valores culturais e éticos assim como as regras da boa convivência comunal. Neste contexto o professor, além das suas funções de ensinar na escola, assumia também a de líder comunitário, referência de comportamento, braço direito dos curas de almas, regente de coral, sacristão, etc. O resultado não podia ser outro. No final da década de 1930, ocasião em que Estado Novo e sua Campanha de Nacionalização, interveio no sistema e, em nome de um nacionalismo equivocado e xenófobo, truncou essa dinâmica, todas as comunidades contavam com sua escola, em torno de 1500, somando católicas e protestantes. Escola e Igreja, formação profana e religiosa, formaram dois dos pilares que conferiam um perfil inconfundível à região colonial. A eles veio somar-se um terceiro, para completar o tripé da identidade étnica dos imigrantes alemães: o Associativismo. Costumava-se afirmar: “onde se encontram dois alemães, funda-se uma associação”. No começo do século XX, quando as comunidades alemãs já somavam milhares, quando as fronteiras de colonização avançavam sobre as reservas de florestas virgens da Serra, Missões e Alto Uruguai, foi preciso pensar em organizações mais abrangentes. Surgiram então, em 1900 o “Bauernverein”  ou Associação de Agricultores” e, em 1912 o “Volksverein” ou “Sociedade União Popular”, duas associações com ambiciosos projetos de desenvolvimento social, econômico e cultural, para dar conta das demandas das comunidades rurais de que estamos falando.
A resultante humana dessa fórmula peculiar de que os imigrantes alemães se valeram, resultou no cidadão brasileiro, também peculiar: o “Teuto-Brasileiro”. Quem viaja pelos estados do sul do Brasil, encontra esse cidadão, perfeitamente integrado na vida nacional, cultivando ainda os valores e tradições dos seus antepassados, ancorado na família e comunidade e, não, raro utilizando na comunicação diária os dialetos falados nas províncias de origem da Alemanha, com forte incidência de vocábulos e expressões do português.
(NB. Maiores informações encontram-se no texto completo da matéria, indicado na bibliografia))


Esta matéria foi publicada originalmente  em “Etnia e Educação : a escola “alemã” do Brasil e estudos congêneres. Editora da UFSC/Edditora Unisul, Florianópolis/Tubarão, 2003


This entry was posted on sábado, 2 de agosto de 2014. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. Responses are currently closed.