O caixeiro viajante

Ao mesmo tempo em que a região colonial se consolidava e começava a dar sinais evidentes de prosperidade, estabeleceram-se nos centros urbanos como Rio Grande, Pelotas e, especialmente, Porto Alegre, casas de importação e exportação dedicadas aos mais diversos ramos do comércio, ao lado de estabelecimentos comerciais de todos os tamanhos e feitios. No começo Rio Grande era o único porto marítimo do Rio Grande do Sul e liderava o grande comércio ligado à importação e exportação.  Em Pelotas localizavam-se  os grandes abatedouros, em  torno das quais nasceram indústrias alemãs que manufaturavam: sebo, vísceras, patas, ossos, chifres, e demais sobras, transformando-as em sabão, velas, cola, farinha  de osso, adubo, etc.
Dois fatores fizeram com que, a partir de 1850, Porto Alegre assumisse o papel de polo comercial e industrial maior do Estado, relegando Pelotas e Rio Grande para um segundo plano. Em primeiro lugar, foi o avanço da colonização para fora do vale do rio dos Sinos. No decurso da década de 1850, a porção média dos rios Caí, Taquari, Pardo e Jacuí até Santa Maria, foi sendo desbravada. Em poucas décadas os excelentes solos daquelas bacias fluviais transformaram-se em ricos celeiros de produção agrícola: feijão, milho, batata, mandioca, tabaco. O milho e a mandioca convertidos em banha de porco, um dos pilares da prosperidade da época. Feijão, banha e farinha de mandioca eram exportados em grandes volumes para o centro do País. Em segundo lugar, em meio ao avanço sobre novas fronteiras de colonização, definiu-se uma eficiente rede de comunicação e circulação de mercadorias, via fluvial com Porto Alegre. As cinco bacias fluviais principais, colonizadas por alemães no começo e poloneses, italianos, e outros a partir de 1870, formaram uma vasta região geoeconômica, que convergia para Porto Alegre, capital da Província, sede do governo e da burocracia oficial, centro financeiro, comercial e indústria e principal porto de navegação interna, porta de saída e entrada, via Rio Grande, para a exportação e importação.
Neste contexto, consolidou-se um complexa rede de comércio cobrindo toda a região colonial, tendo como ponto de convergência Porto Alegre, com as seguintes características. Nas picadas do interior estabeleceram-se casas de comércio locais, as “vendas” Elas compravam dos colonos os excedentes que eram entregues a estabelecimentos intermediários de maior porte, localizados junto a terminais de navegação: São Leopoldo, São Sebastião do Caí, Montenegro, Estrela, Lajeado, Mariante, Cachoeira do Sul. O mesmo papel desempenhavam as estações da ferrovia com seus ramais que começaram a cruzar a região a partir da década de 1870. Em barcos ou de trem as mercadorias seguiam até Porto Alegre onde eram entregues nas grandes casas de comércio aí sediadas. Toda essa movimentação dava-se também em sentido contrário abastecendo as demandas do interior colonial.
À primeira vista o esquema parece simples e funcional. Havia, porém, um questão fundamental a ser resolvida: o intermediários dos negócios, o personagem capaz de manter vivas e ininterruptas as relações comerciais entre todos os elos da cadeia. Entra em cena para exercer essa função o “Caixeiro Viajante” que percorria a região colonial e oferecia as novidades que estavam sendo colocadas no mercado pelas casas importadoras de Porto Alegre, para retornar à base com as encomendas. Foram circunstâncias todo peculiares sob as quais foi posto em movimento e se manteve o vínculo entre o nosso centro de comércio e o “Hinterland” mais afastado do Rio Grande do Sul. Para superar as dificuldades  dos comerciantes do interior e para assegurar o intercâmbio com o grande centro de comércio, utilizando os precários meios de transporte impôs-se, há muito tempo, a necessidade de fazer viajar representantes credenciados. Sua missão resumia-se na procura do “vendeiro” no seu próprio estabelecimento, oferecer-lhe a oportunidade de remeter seu dinheiro sem que fosse obrigado a abandonar o seu negócio por um tempo maior e encomendar as mercadorias, tomando como base as amostras apresentadas pelos caixeiros viajantes. Uma viagem  no lombo de uma mula até Cachoeira do Sul, Veranópolis ou Alegrete e Uruguaiana, por si só significava um desafio gigantesco. Exigia do Caixeiro um preparo físico e uma disposição psicológica fora do comum.
Falar em Caixeiro Viajante significa falar da natureza, da alma da prática comercial na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX e das relações da capital com o interior, do mundo urbano e do mundo rural. O caixeiro viajante Carl Naschold caracterizou a sua profissão e seus personagens no almanaque “Riograndenser Musterreiter”, em 1913:
A vida do Caixeiro Viajante rio-grandense é um maravilhoso poema. Quem sabe apareça alguém que reúna essa joia numa única canção, reúna numa única canção esse apetite indomado, essa atividade cheia de aventuras e persistência em meio a uma natureza toda peculiar, em meio a florescentes colônias alemãs e à Campanha rica em cidades. Benigno leitor queria emprestar asas à imaginação e deixar que cruzam as picadas alemãs, isto é, viajar comigo por uma daquelas estradas que cruzam as picadas alemãs. Vamos a cavalo e avançamos num trote lento e suave como é costume aqui, para não cansar demais o animal. À direita e à esquerda áreas de mato alternam-se com potreiros, roças cultivadas e moradias.. Estas costumam ficar a uma boa  distância umas das outras e um pouco recuadas da estrada. Um muro ou uma cerca protegem as moradias e os potreiros, evitando  que cavalos, reses, porcos e outros animais se evadam.

Aproximamo-nos de uma casa que fica perto da estrada. Diante da porta encontramos , em alguns casos sim em outros não, algumas árvores de sombra. O que nunca falta são postes e sobre eles traves transversais, ou pelo menos argolas para prender os nossos cavalos. Estamos diante de uma casa de comércio, de uma assim chamada “venda”. Apeamos pois a nossa intenção é conhecer caixeiros viajantes que têm como cenário de trabalho as vendas. A atenta dona da venda apressa-se em oferecer uma cadeira para a nossas bela leitora, para facilitar o desmontar com o vestido comprido. Na maioria dos casos, as mulheres das colônias costumam andar a cavalo com vestido curto, sendo que cavalgam bem à maneira dos homens. Saímos da luz ofuscante do dia e entramos na agradável penumbra da venda protegida da claridade com cortinas. Saudamos os presentes com um apeto de mão como é costume no País, quando se trata de alguma forma de conhecidos. Depois, sentamo-nos num banco em frente à mesa da loja, chamada balcão. As senhoras que nos acompanharam sentam-se em cadeiras que lhes são oferecidas. Pedimos uma garrafa de cerveja nacional pois, a cavalgada ao sol nos rendera uma grande sede. Para as senhoras há licor, água com extrato de framboesa e doces ...... Encaminhamo-nos até a porta e eis que se aproximam dois cavaleiros, chapéus de abas largas e caídas sobre a cabeça, um poncho esvoaçando ao vento, lenço no pescoço, botas de cano alto munidas com  grandes esporas, o relho, com a direita segurando o chicote de cabo curto, a pistola na guaiaca, o cinturão com a bolsa do dinheiro, confeccionada com pele de animal. Ainda não é certo que se trata de caixeiros viajantes pois, este é o traje nacional do Rio Grande do Sul e o mais adequado para as viagens  no interior. Um dos homens, ainda moço, carrega atrás de si, pendendo de ambos os lados da cela, duas grandes bruacas de couro marrom. É o distintivo do caixeiro viajante. Passam por nós, erguem levemente o chapéu, saltam das mulas, passam o cabresto pela argola do poste e prendem-no na trave. Entram na venda e saúdam a vendeira com um aperto de mão. Perguntam pelo dono da casa, pela família e de modo especial pelas filhas da casa. Os colonos presentes também os saúdam como velhos conhecidos. O motivo está nas muitas festas na colônia de que os viajantes participam. Em cada uma das ocasiões em que se acham presentes, cabe-lhes o papel mais importante. São dançarinos desenvoltos e valentes bebedores. Os filhos da colônia a que aos quais surrupiam as garotas reconciliam-se com eles pelas maneiras elegantes e espontâneas. Mandam servir dúzias de “inglesa”, isto é, cerveja estrangeira. Conhecem as piadas mais engraçadas, sabem contar acontecimentos políticos e são o jornal vivo para a colônia. Cabe a eles formar a opinião  dos colonos e dos comerciantes do interior. Durante a recente revolução rio-grandense eram vistos pelo governo como perigosos propagandistas dos maragatos, em outras palavras, perturbadores da ordem, o que obviamente não passou de uma injustiça. Com raras exceções, defendiam o único ponto de vista razoável: manter as colônias neutras frente à guerra fratricida de brasileiros com brasileiros. Os caixeiros  representam, em todo o caso, um poder. São os pioneiros do comércio alemão e os defensores do germanismo. Conquistam muitos amigos e o apoio na colônia, são convidados para padrinhos e a maioria busca a esposa nas melhores famílias da colônia.

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