A Religiosidade no quotidiano dos imigrantes


A história da humanidade é uma história de migrações e seus efeitos. É assim que  Karl Fouquet começa o seu livro: “A contribuição alemã para a construção da nação brasileira”, por ocasião do sesquicentenário da imigração alemã no Brasil. Várias coisas merecem destaque  nesta colocação. Em primeiro lugar, o homem como sujeito e ator da história é, e sempre será, um eterno migrante, um forasteiro, um peregrino sempre a caminho. Em segundo lugar, a pergunta: porque afinal o homem migra? A resposta deve ser procurada  na própria natureza humana, em constante busca de realização, em busca do aperfeiçoamento. É por essa razão que o homem não se cansa em melhorar a segurança e o bem estar material; vai à procura da inserção num relacionamento social que lhe assegura um convívio frutífero com seus semelhantes; busca  aperfeiçoar-se culturalmente apropriando-se de sempre novos conhecimentos; procura o equilíbrio interno de suas demandas psicológicas; e, de modo especial, administrar  os mistérios e as incógnitas da vida, da natureza e do universo por meio de  crenças, rituais, atitudes e práticas religiosas. Os teóricos que se ocuparam com o fenômeno da migração, tentaram, cada qual a partir do ângulo em que analisou o fato, identificar os motivos, ou o motivo, porque o homem migra. Para o economista, o homem migra para prover as necessidades materiais do dia a dia; para o sociólogo, o homem migra para livrar-se de uma situação social que o impede de beneficiar-se com o convívio dos seus semelhantes. Mesmo que esses motivos e outros tantos, representem o momento da tomada de decisão para migrar, no fundo, no fundo, uma motivação permeia todas as outras. Resume-se na tendência, no instinto do homem em concretizar a sua realização existencial. Os romanos, na sua proverbial capacidade de formular máximas sábias, legaram uma que expressa na plenitude conceitual, a razão porque o homem migra: “Ubi bene, ibi patria”  - onde o homem se sente bem aí está a sua pátria.
Qualquer que seja a situação que leva o homem a migrar, implica em decisões acompanhadas de consequências mais ou menos traumáticas. Como ponto de partida cobra do migrante o abandono e a renúncia à terra natal e todo seu entorno humano e sua história. Trata-se sempre de um desenraizamento e de um transplante movido pela esperança de encontrar a realização, a segurança e a felicidade em outra parte. A nossa atenção centra-se nas migrações transoceânicas durante  o século XIX, período em que a Europa Central e do norte, expeliu  seus excedentes populacionais, para todos os quadrantes do planeta, de modo especial para as três Américas. Não é difícil imaginar o que significou na época e nas circunstâncias de então, uma viagem da Europa para o sul do Brasil. As viagens duravam meses dos portos alemães e holandeses até o Rio de Janeiro e, finalmente, para Rio Grande,  Porto Alegre e São Leopoldo. Era tarefa para homens e mulheres em grandes dificuldades, mas decididos em busca de uma saída, movidos por uma fé inabalável em si mesmos mas sobretudo uma profunda fé em Deus. Cristãos que eram, protestantes e católicos, encaravam o migrar como uma autêntica peregrinação em busca da terra prometida. Um canto entoado pelos emigrantes do Hunsrück, dizia:
Fomos chamados por Deus, caso contrário, a nossa peregrinação não teria sentido.
Acreditando Nele nos pomos a caminho.
Deus falou a Abraão: deixa a tua terra e parte para aquela que, com minha mão forte, te mostrarei. Também nós acreditamos na Sua poderosa voz. Por isso partimos daqui em busca do Brasil distante.
Os imigrantes serviram-se de duas armas para enfrentar o desconhecido e as transformaram em lema: “ora et labora” – “reza e trabalha”. Práticos como eram esses camponeses, sabiam muito bem que a oração sem o trabalho não passa de alienação e o trabalho sem a oração num fardo insuportável. E no seu quotidiano como é que os imigrantes concebiam a punham em prática o binômio “Reza e Trabalha”. Para responder a essa pergunta, é preciso entender a cosmovisão própria do camponês, do agricultor ou do colono. O contato diuturno com a natureza, com a “mãe terra”, ensina-lhe que entre ele e o mundo que o rodeia, há uma relação existencial. A vida e o bem estar dependem  dos animais, das plantas, do sol, da lua do calor, do frio, da alternância das estações, etc. E assim o sol e a lua com seus ciclos regulares, a cadência da natureza, deixam de ser apenas fenômenos naturais, para se transformar no palco  em que a existência do homem se torna possível. E nesta relação simbiótica o homem constrói sua cultura, sua história, seu imaginário, sua simbologia, sua mitologia, suas crenças, sua religião, sua religiosidade, seus rituais, seus princípios éticos. Tudo que o rodeia se anima e se personaliza, de acordo com o significado material, mágico ou religioso de que vem revestido. As realidades naturais e os fenômenos que as acompanham, assumem vida e importância pelo que representam no quotidiano e pelo que sugerem à imaginação. Essas observações aparentemente talvez não tenham nenhuma ou pouca relação com a religiosidade dos nossos antepassados. Na verdade, entretanto, suas vidas foram vividas e suas histórias  construídas, ressalvadas as peculiaridades históricas e geográficas.
A religiosidade dos indivíduos e das comunidades dos imigrantes identifica-se em dois níveis. O primeiro, o mais visível, a qual normalmente serve de termômetro para avaliar o grau e a profundidade  da religiosidade, são as práticas religiosas formais como a frequência às missas e cultos, novenas procissões, orações da manhã, nas refeições, antes de dormir, etc. Caracterizam à sua maneira, cada uma das tradições mais importantes de que nos ocupamos aqui: a luso-brasileira, a alemã evangélica e a alemã católica. O segundo, que poderíamos chamar  de respostas informais de natureza religiosa que costumam manifestar-se espontaneamente diante das situações mais inusitadas que costumam acompanhar o quotidiano das pessoas. Uma surpresa agradável, uma notícia triste, uma catástrofe natural, um espetáculo da natureza, a contemplação de uma flor, o caminhar por uma plantação amadurecendo, a satisfação com uma boa colheita. Esses cenários e dezenas de outros costumam ocasionar  momentos de irrupção da religiosidade na sua forma mais espontânea e, por isso mesmo, mais autêntica. É neste plano que se manifesta a verdadeira religiosidade. No momento em que a pessoa percebe que as fórmulas feitas, já não dão conta do que sente e intui, recorre à espontaneidade que tem na oração do silêncio a sua manifestação mais eloquente. Fórmulas e versos atrapalham e, tanto o homem simples quanto o colono com a enxada ou o machado na mão e quanto o sábio e o cientista, munido da pena e do computador, refugiam-se na reflexão silenciosa que os põe em sintonia com a natureza, e nas suas manifestações mais prosaicas e  mais grandiosas, escutam a voz de Deus. O Dr. Francis Collins, diretor do Projeto Genoma, responsável pelo mapa  genético do homem, em seu livro “A Linguagem de Deus”, caracterizou o tipo de religiosidade de que estamos falando:
“Depois que passei a acreditar em Deus, empreguei um tempo considerável tentando apreciar as características Dele. Conclui que Ele deve ser um Deus que se preocupa com as pessoas. Também conclui que Deus deve ser santo e justo, já que a Lei Moral me chama nessa direção. Contudo isso me parecia uma abstração terrível. O fato de ser bom e amar as suas criaturas não significa, por exemplo, que tenhamos a habilidade de nos comunicar com Ele, ou que tenhamos um tipo de relacionamento com Ele. Descobri, porém, uma sensação crescente de anseio por essas coisas, e comecei a perceber que é para isso que sevem as orações. A oração não é, como alguns parecem sugerir, uma oportunidade para manipular Deus para que Ele faça o que você quer. Em vez disso, trata-se de uma forma de buscar uma afinidade com Deus, aprender com Ele e tentar perceber o ponto de vista Dele, sobre vários assuntos ao nosso derredor, que nos deixam confusos, em dúvida e em sofrimento”. (A linguagem de
Deus. Francis Collins, Edit. Gente, São Paulo, 2007)


Palestra proferida, da Associação das Comunidades Teuto-Brasileiras  do Litoral Norte, no Encontro em São Pedro de Alcântara.





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