Da Enxada à Cátedra [ 1 ]

Da Enxada à Cátedra 

 

 

Sumário 

Apresentação 

Minha terra natal 

Como tudo começou 

Lugares. Espaços e caminhos da infância 

Festa em Família 

Viagem a Santa Clara do Sul 

Minha formação 

Minha Escola 

O Currículo 

A religião 

A língua alemã 

A memorização 

A composição 

A ortografia 

A caligrafia 

A língua portuguesa 

Aritmética e cálculo 

Realia – realidades 

O canto 

Nacionalização da Escola Comunitária 

A caminho da escola 

Formação no nível médio 

O Colégio Santo Inácio 

A rotina diária 

Programação acadêmica 

Atividades complementares 

O Museu 

Excursões 

Período da Segunda Guerra Mundial 

O após Segunda Guerra Mundial 

Construção da Capela e Salão de Atos 

Viagem a São João do Oeste 

No Noviciado 

 Bacharelado em Línguas Clássicas – Retórica 

Bacharelado em Filosofia. 

Férias em São Francisco de Paula 

Bacharelado na UFRGS 

Docente no Colégio Anchieta 

Docente na UFRGS e Licenciatura em Teologia 

Observações introdutórias 

Falecimento do Pe. Balduino Rambo 

Ano de 1962 

Viagem pelo Rio Grande do Sul 

Ano de 1963 – Conclusão da Formação Teológica 

Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e Faculdade de C. Econômicas 

Organização do espaço físico 

Cursos de Matemática, Física e História em 1963 

Instituto Anchietano de Pesquisas 

Transferência da Xácara da Prefeitura 

Diagnóstico Socioeconômico de Dois Irmãos 

Cooperativa Agropecuária Piá 

Valorização do vale do Rio dos Sinos 

Planisinos 

Extensão da Filosofia a Taquara 

Projeto da Universidade do Vale dos Sinos – Unisinos 

Década de 1960 na UFRG 

Reforma do Ensino 

O Marxismo 

O Mapa Mundi redesenhado 

A Urbanização 

A ação Popular – “Action Populaire 

O Gramscismo 

Escola de Frankfurt 

Teologia da Libertação 

Dedicação exclusiva na Unisinos 

Coordenador do PPGH 

PPGH em Santo Ângelo 

Viagem a Halle na Alemanha 

Viagem ao Chile 

Viagem à Alemanha e Norte da Itália 

Acervo de documentação e Pesquisa – ADOPE. 

Bibliotecas e Acervos Documentais. 

Viagens à Europa 

2002 – Praga – Inglaterra 

2004 – Paris – Rimini – Urbino 

2005 -  Roma – Praga 

2006 – Milão – Trento – Stuttgard 

2007 – Inglaterra – Berlim Praga 

2009 – Inglaterra -  MuniqueBolsano 

2011 – Inglaterra Verona 

O Entardecer 

 

  

 

 

Apresentação. 

 

“Recordar é um pouco percorrer novamente velhos caminhos, mas é também imaginar o ocorrido e construir sobre ele uma nova realidade. Pois, como afirma Valle Inclán: As coisas não são como as vemos, mas como as recordamos”. (cf. Caldera, 2004, p. 14). Para começar, não é pretensão minha escrever uma autobiografia. Meu propósito resume-se em pinçar na minha memória episódios paradigmáticos que fazem parte da minha trajetória de mais de nove décadas, inserida no contexto histórico, geográfico, cultural e religioso moldado pelos imigrantes alemães no sul do Brasil, hoje na quarta até nona geração aqui nascida. Como é conhecido por qualquer um com um mínimo de conhecimento dessa realidade como os colonos consumiam a sua existência praticando a  policultura nas suas pequenas glebas, destinada, antes de mais nada para garantir o sustento das famílias. Esses pequenos produtores rurais costumavam percorrer basicamente dois caminhos o diário de ida e volta para a roça e o dominical de ida e volta à igreja. As comunidades mantinham suas próprias escolas. Os lugares, espaços e caminhos em que as pessoas circulavam não costumavam ultrapassar os limites que marcavam o espaço comunal. Acontece que esse espaço não vinha a ser hermético ao ponto de simplesmente impedir aos filhos dos colonos de encontrar saídas para se encaminharem para uma outra modalidade de vida que não fosse cultivar milho, feijão, batata, mandioca, abóboras e criar porcos. A assistência religiosa, a administração de hospitais, a educação confiada às ordens e congregações religiosas, masculinas e femininas, assim como a pastoral sob a responsabilidade do clero regular ou diocesano, vinham a ser a porta mais comum que se abria para os filhos e filhas dos colonos para opções de vida que não fosse a “ida e volta diária da roça” ou a “ida e volta semanal para igreja”. Instituições destinadas à formação de religiosas e congregações masculinas não clericais, seminários para  a formação do clero regular e diocesano, escolas normais para a formação de professores, recebiam os filhos e filhas dos colonos em princípio vocacionados para entrar numa congregação ou ordem religiosa. Evidentemente, a grande maioria, calculo em torno de 80%, mudavam de rumo no decorrer da formação. Uma parcela voltou para “a enxada” mas a maioria veio a dedicar-se a profissões liberais, entrou no serviço pública, entrou nas forças armadas, dedicou-se ao comércio, ao magistério no ensino fundamental, médio e superior. Mesmo daqueles que de fato entraram numa ordem ou congregação religiosa, uma alta percentagem cumpriu sua missão de vida como professores e professoras, enfermeiras e em casos menos frequentes exerceram o magistério e ou dedicaram-se à pesquisa em universidades públicas ou privadas. E, para não estagnar em considerações abstratas, permito-me lembrar a minha família como exemplo. Da família do meu avô materno uma das minhas tias foi religiosa franciscana e um tio, o mais novo da família, sacerdote diocesano. Da família do meu avô paterno, três das minhas tias foram religiosas franciscanas, um sacerdote diocesano e um jesuíta. Passando agora para minha família, dos oito filhos o mais velho, o Balduino foi jesuíta, professor de ciências no ensino médio, catedrático fundador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, botânico com renome consagrado entre os da nata mundial dessa especialidade, fundador do parque dos Aparados, escritor. O Roberto, também jesuíta foi professor de química, física e matemática no ensino médio e bioquímica na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. A Tecla, foi religiosa franciscana, professora no ensino médio em Santa Maria, cofundadora e professora na Faculdade Imaculada Conceição, hoje Unifran (Universidade Franciscana) em santa Maria. Conquistou PHD em língua e literatura inglesa e americana na Universidade Católica de Washington e foi  professora titular desta especialidade na Universidade Federal de Santa Maria. Eu próprio, mais novo dos oito irmãos, como jesuíta conquistei o bacharelado em Línguas Clássicas, em Filosofia, em História Natural e Geologia e licenciatura em Teologia e, mais. tarde Livre docência em Antropologia, doutorado em Filosofia, e pós-doutorado na Universidade V, René Descarte de Paris. Sou professor titular emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Posto esse panorama de fundo, creio que, em vez de “Recordações”, “Flagrantes” ou “Reminiscências”, o título “Da Enxada à Cátedra” expressa melhor as minhas intenções. O objetivo maior resume-se em destacar aspetos que foram característicos e marcantes  da minha trajetória além de refletir sobre eles, começando pela década de 1930 pois, nasci em três de fevereiro daquele ano. 


[ Reflexões ]

A revolução agrícola

Simultaneamente no espaço e no tempo à “Revolução Pastoril” aconteceu a “Revolução Agrícola. Darcy Ribeiro chamou as duas “revoluções” como a “Revolução dos Alimentos”. A revolução agrícola começou a tornar-se possível a partir do momento em que os coletores da pré-história perceberam que determinadas espécies de plantas que lhes forneciam sementes, raízes, tubérculos e frutos comestíveis, podiam ser cultivadas, tornando-se mais produtivas e as colheitas mais seguras e previsíveis. O manejo controlado das plantas teve, ao lado do potencial incalculável de novas perspectivas na provisão das necessidades básicas de sobrevivência, uma profunda revolução na relação do homem com seu entorno natural. Da condição de total dependência dos caprichos da natureza os povos agricultores passaram a valer-se cada vez de mais e melhores tecnologias, melhorando os métodos de plantio, identificando mais espécies de plantas passíveis de manejo e, desde muito cedo, manipulando pela seleção e o cruzamento diversas variedades nativas, obtendo híbridos mais produtivos. O homem e a natureza selaram, por assim dizer, uma aliança e solidificaram uma relação de mutualidade que serviu de trampolim para um salto de qualidade sem precedentes: A Revolução dos Alimentos. Foi o ponto de largada para a simbiose entre a ação cultural do homem e o entorno geográfico. Os resultados dessa parceria do agricultor com seu chão fizeram-se sentir de muitas formas. Sem privilegiar uma ou outra, destaquemos algumas.

O preparo da terra, a semeadura, o cuidado com o desenvolvimento das plantas, a colheita e o recomeço de um novo ciclo agrícola, determinaram o fim da vida itinerante exigida pela coleta. Os agricultores tornaram-se sedentários, instalaram moradias em aldeias permanentes.  O chão preferido pelos povos agrícolas primitivos foram as terras planas ao longo dos grandes rios da África, Oriente Médio e Próximo, Índia e China. Assim, a partir do momento em que dispomos de dados históricos mais precisos, encontramos o vale do Nilo, do Eufrates e Tigre, do Indo, do Ganges, do Yankze, do Hoango e outros, cobertos por uma mosaico de terras plantadas e pontilhados por inúmeras aldeias. Em pontos estratégicos centros urbanos de porte polarizavam as atividades de regiões maiores. O gigantesco potencial de progresso desse processo de humanização que se desencadeou desde a “domesticação” das primeiras plantas úteis no Neolítico, ainda não está esgotado. Das várzeas dos grandes rios a agricultura avançou sobre as encostas de montanhas, tomou o lugar das florestas, transformou em grande parte estepes, savanas e pradarias, impulsionada por sempre novas tecnologias de manejo do solo e espécies de plantas. Em regiões inteiras reduziu a curiosidades ecológicas as relíquias da paisagem original. Acontece que a primeira necessidade do homem de 15000 ou 20000 anos passados e do começo do terceiro milênio, tem em comum a necessidade de alimentar-se. E quem fornece os alimentos são, ainda hoje, os criadores de animais e os agricultores, amparados pelas descobertas científicas e a maior eficiência das tecnologias de produção. E com isso o processo de humanização acelera-se e vai-se impondo cada vez mais sobre as últimas paisagens naturais. Em não poucos casos os métodos empregados e a ausência de critérios, tornam evidente que se chegou a um limite crítico. Continuando nesta direção corre-se o risco de quebrar o equilíbrio da simbiose entre cultura e meio ambiente.

Dispensam-se teorias complicadas ou métodos refinados de observação. Basta um olhar um pouco mais atento para a História, a fim de nos convencermos do acerto dessa afirmação. Entre os agricultores, o sol, a lua com seus ciclos regulares tornaram-se referência da própria dinâmica da História. E em torno do nascer de do ocaso do sol, alternância mensal das fases da lua, da sucessão das estações do ano, o agricultor foi elaborando e consolidando todo um universo simbólico, um universo de costumes, hábitos, valores, crenças, cultos e rituais. O sol definindo os ciclos anuais e, pela alternância das estações, comanda a preparação da terra, a semeadura, a germinação das sementes, o crescimento o florescimento, a maturação das colheitas e, finalmente, a colheita. Em meio a esse eterno fluxo e refluxo, germinar, nascer, crescer, declinar e morrer os fenômenos pela sua natureza astronômicos, cosmológicos, geográficos e climatológicos, transformaram-se em fatores causais de fundamental importância na consolidação da identidade étnica e cultural. A primavera veio a simbolizar o germinar da vida e juventude, o verão a plenitude do vigor adulto, o outono a colheita dos bons ou maus frutos, o inverno o declínio e finalmente a morte, para, em seguida, germinar nova vida e recomeçar o eterno vir e devir. A sucessão e o ritmo das estações e os ciclos da vida terminaram confundindo-se simbolicamente numa única e a mesma dinâmica. É neste sentido que se fala em primavera da vida ou vida contada em primaveras. Pela sua importância o sol e a lua, foram adorados como divindades por não poucos povos. 

As observações feitas acima mostram como a identidade étnica e cultual dos caçadores e coletores da pré-história e a dos criadores de animais e agricultores, já no limiar dos tempos históricos, foi o resultado da simbiose entre o entorno geográfico e a satisfação das necessidades materiais e espirituais do homem. Alguém poderia objetar que há um exagero em tudo isso. A insistência no papel do meio ambiente poderia levar à falsa compreensão de que as culturas, pelo menos aquelas rotuladas como “primitivas”, não passam de um produto do entorno físico-geográfico. É verdade que quanto mais se recua na História tanto mais visível fica essa impressão. Há, contudo, uma diferença essencial entre deixar marcas definitivas no quotidiano do homem e o determinismo geográfico puro e simples. Tanto o exagero em minimizar ou até ignorar as circunstâncias geográficas, quanto o de atribuir-lhes um papel além do devido pela própria natureza das coisas, leva a uma avaliação distorcida da gênese e moldagem da cultura. No esforço de identificar o perfil das culturas nos seus estágios mais antigos de evolução e as identidades étnicas que imprimiram nos respectivos povos, não se pode esquecer que a individualidade étnica tem a sua raiz na inteligência reflexa, privilégio exclusivo do homem. Ela responde de forma original e criativa aos estímulos que vem do meio geográfico. É neste particular que reside a sua enorme importância. O cenário geográfico oferece o palco sobre o qual se tornou possível a representação da História do homem. Como ele é capaz de dar respostas alternativas aos estímulos que variam de ambiente para ambiente, as identidades étnicas exibem as marcas dos traços deixados pela paisagem na qual foram moldados. Disfarçados ou flagrantes permeiam e iluminam a complexa urdidura da trama de   que é responsável pela identidade étnica. E do outro lado, a intervenção criativa do homem no seu entorno geográfico, fez dele muito mais do que um fornecedor dos meios de subsistência. Instrumentos, ferramentas, utensílios, armas, enfim, o aperfeiçoamento, a diversificação e especialização de tecnologias, permitiu ao homem intervir sempre mais profundamente no seu entorno, imprimindo-lhe uma feição cada vez mais humanizada. Lentamente aconteceu, assim a simbiose, a síntese entre a paisagem e a alma do homem e, desta relação do homem com o seu chão, floresceram no decurso dos milênios as culturas e moldaram-se as identidades étnicas. O Pe. Balduino Rambo, diante da riqueza de peças arqueológicas pré-históricas no museu de Filadelfia, registrou a seguinte reflexão:

“O homem que, como caçador e coletor, há muitos milhares de anos, vagava pelas florestas e estepes, de forma alguma era meio ou três quartos animal. Tratava-se de um verdadeiro homem, até certo ponto altamente dotado, muito astuto e piedoso à sua maneira, como são os selvagens de hoje. Foi ele o inventor de todos os instrumentos que servem para cortar, furar, desbastar, serrar, aplainar. O homem primitivo confeccionava de madeira, conchas, ossos, chifres e sílex, tudo que hoje se fabrica de aço e ferro. Inventou a técnica de assar, fritar, refogar, cozinhar e, com isso, as artes básicas usadas na cozinha. A tarefa que hoje confiamos tranquilamente a cozinheiros e cozinheiras, o homem primitivo teve que tentar, experimentar e excogitar penosamente. Ele foi o descobridor do fogo, a energia benfazeja, sem a qual nenhuma tecnologia humana é possível. Se hoje acionamos o poder do fogo sob as panelas, atrelamos às máquinas a vapor, ao motor dos nossos carros, aos navios, às máquinas voadoras, o devemos, em última análise, ao homem antigo, que entrou em contato com o fogo quando da queda de um raio, na erupção de um vulcão ou aprendeu a produzi-lo com a fricção de madeiras ou batendo um fragmento de sílex contra o outro. Ele foi também o inventor das armas: do arco e da flecha, do machado de guerra, dos punhais e lanças. Sorte sua que não descobriu a pólvora e a bomba atômica, porque a humanidade teria perecido já nos tempos primigênios. Foi inventor da arte de costurar, comprovada pelas numerosas agulhas de chifre e osso, com mesmo feitio e quase tão finas quanto as nossas agulhas de aço. Confeccionava vestes com peles de animais e não vagava nu por aí como querem aqueles que gostam de venerar animais como seus avós. Foi inventor da moradia humana, primeiro em cavernas, depois em buracos subterrâneos, cabanas e, finalmente, em casas de verdade, mesmo que fossem  
menos confortáveis que nossos arranha-céus e palácios. Certamente tinham melhor ventilação e reuniam a família em volta da chama amiga como diz a canção: “E se o fogo arde num lugar hospitaleiro, estamos protegidos e, à luz das chamas comemos até saciar”. (Rambo, Balduino. Três meses na América, p. 400).